O chá da reunificação
Na sexta-feira passada, num subúrbio de Xangai, pedi um chá numa loja da Yifang Fruit Tea, uma marca de Taiwan, e fiquei impressionado pelas caras tristonhas dos empregados. Só mais tarde percebi o motivo para tal desalento: o receio do desemprego.
A 5 de Agosto, uma greve geral paralisou Hong Kong, como parte de uma série de protestos que começaram há dois meses, primeiro contra uma lei que permitiria a extradição para a China continental. Nesse dia, uma das lojas da Yifang Fruit Tea em Hong Kong encerrou em solidariedade, tendo colocado um sinal que dizia em chinês “Estamos ao lado dos Hong Kongers”. Fotos da loja rapidamente chegaram à principal rede social chinesa, Weibo, onde as notícias sobre o assunto foram lidas 350 milhões de vezes. Muitos cibernautas apelaram a um boicote, não apenas da Yifang Fruit Tea mas também de outras marcas de chá taiwanês, acusadas de apoiar o movimento que exige maior democracia em Hong Kong.
Isto apesar de um representante da empresa em Hong Kong ter colocado, também na Weibo, um pedido de desculpas, dizendo que os trabalhadores responsáveis pelo sinal tinham sido despedidos, condenando os protestos e jurando fidelidade ao princípio “um país, dois sistemas” que rege a relação entre a região e a China continental.
Mais curiosa foi a reacção em Taiwan, onde os cibernautas acusaram a empresa de “se vergar” ao Partido Comunista e, sobretudo, aos lucros vindos do interior da China. A página da Yifang Fruit Tea no Facebook recebeu mais de 6.400 comentários, muitos deles de taiwaneses que juravam também nunca mais beber chá daquela empresa.
A própria presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, comentou a polémica, sublinhando que “o chá de fruta é melhor quando é natural. Quando se mistura política, não sabe bem”.
Turismo congelado
A invulgar polémica surge numa altura em que o regime chinês é acusado de tentar influenciar a corrida às eleições presidenciais de Taiwan, marcadas para Janeiro. O Partido Comunista não tem escondido o desagrado com Tsai Ing-wen, que acusa de não reconhecer a existência de “uma só China” e de defender a independência formal do arquipélago.
A pressão voltou a sentir-se a 31 de Julho, quando o Ministério chinês da Cultura e Turismo anunciou que residentes de 47 cidades – incluindo a capital Pequim e o maior centro financeiro do país, Xangai – não poderiam mais visitar Taiwan em viagens individuais. A partir do dia seguinte, os turistas da China continental viram-se limitados a excursões organizadas.
Não é a primeira vez que a China utiliza o poder económico dos seus turistas em disputas diplomáticas. Desde a vizinha Coreia do Sul à Nova Zelândia, passando por Palau, um pequeno arquipélago no oceano Pacífico, vários foram os países que viram multidões de visitantes chineses a desaparecer de um dia para o outro.
Claro que a Formosa vai sentir o impacto económico da suspensão das viagens individuais, já estimado em 900 milhões de dólares norte-americanos. Afinal, só na primeira metade deste ano a ilha recebeu 1,67 milhões de turistas do continente, mais 28 por cento do que em igual período de 2018.
Mas já em 2016 o regime chinês tinha, como retaliação pela eleição de Tsai Ing-wen, reduzido as quotas para visitas à ilha. Isso obrigou Taiwan a procurar outros mercados, como o Japão e a Coreia do Sul, cujos turistas gastam mais do que os chineses e compram mais produtos locais.
Ou seja, Pequim ajudou a ilha a preparar-se melhor para enfrentar uma eventual debandada dos visitantes do continente. Aliás, ironicamente a economia da Formosa tem ganho também com a guerra comercial entre a China e os Estados Unidos, com algumas empresas locais a transferir operações do continente de volta para Taiwan.
Dinheiro ou a vida
O Partido Comunista tem apostado em tentar seduzir a população da ilha com as oportunidades que a segunda maior economia do mundo oferece. Mesmo no caso de alegadas notícias pagas pelas autoridades chinesas em jornais de Taiwan, a maioria das peças destacavam benefícios fiscais para empreendedores, oportunidades de investimento e afins. O problema é que não é a economia o principal campo de batalha mas sim uma questão de identidade. Por um lado, as gerações mais velhas de Taiwan ainda se consideram chinesas e anseiam por uma reunificação, ainda que condicional ou, no melhor dos mundos, com uma China democrática.
O líder da capital, Taipé, Ko Wen-Jo, que se posiciona como um possível candidato à presidência, defendeu por exemplo que a ilha e o continente são “uma só família”. Mesmo Tsai Ing-wen sublinhou, em resposta à suspensão das visitas individuais, que permitir aos chineses “vivenciar o nosso estilo de vida livre e democrático” é “a maneira mais natural de melhorar a comunicação” entre os dois lados.
Pelo contrário, há entre as novas gerações, que cresceram já numa Taiwan soberana e democrática, uma crescente indiferença perante o ideal de uma China unida. Tal como acontece em Hong Kong, os jovens da Formosa consideram-se cada vez mais taiwaneses e não chineses. Algo que se reflecte, por exemplo, no renascer do dialecto taiwanês.
As tentativas do Partido Comunista de conquistar os corações das novas gerações da ilha têm falhado redondamente, nomeadamente por andarem ao sabor tanto da opinião pública como da política interna do continente. Ainda na quarta-feira passada o regulador da indústria cinematográfica chinesa proibiu a participação de filmes e estrelas do continente na edição deste ano dos Golden Horse Awards de Taiwan, considerados os Óscares do cinema de língua chinesa.
Conseguirá a China influenciar as próximas eleições presidenciais de Taiwan? De certeza que sim, mas é bem possível que lhe saia o tiro pela culatra. Ou seja, a pressão vinda do continente, a juntar à crescente solidariedade que se sente na Formosa com os protestos pró-democracia em Hong Kong, podem galvanizar as novas gerações no apoio a Tsai Ing-wen, que curiosamente tinha a reeleição em risco.
Foto de destaque: hoa_n_ng (Flickr)