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Uma escultura de marfim chamada “Adeus, minha concubina”

February 4, 2021

Uma escultura de marfim chamada “Adeus, minha concubina”

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Gostaria de apresentar aqui “Adeus, minha Concubina”, uma peça de marfim da autoria do meu pai, Cheong Chi Fai, que trabalhou como artesão nos anos 1980, a era dourada do trabalho a marfim em Macau.
Mas antes disso: esta peça leva-nos, claro, à obra literária “Adeus, minha Concubina”, da famosa escritora de Hong Kong Lilian Lee. Há uns anos comprei em Lisboa, na Estação do Oriente, a tradução portuguesa de José Luís Luna e, para ser sincero, fiz a aquisição desta edição de 1994 apenas porque me chamou a atenção a foto da capa, com o actor Leslie Cheung (1956-2004) – meu ídolo – vestido com o traje da consorte da ópera pequinense “Yù, a Bela”, na adaptação cinematográfica do livro (“Adeus, minha Concubina”, 1993).
Este filme foi o primeiro e o único chinês – aliás, uma co-produção entre a China continental e a então colónia britânica Hong Kong – a ganhar a Palma de Ouro de Cannes.
Posso dizer que dentro e fora desta obra-prima da sétima arte, Leslie Cheung se suicidou três vezes: a primeira aconteceu quando a personagem Yù, a Bela, que Leslie desempenha numa peça de ópera de Pequim dentro do filme, tira a própria vida à frente do rei Xiàng Yǔ (Hong Ü, em cantonense, 232-202 a.C.); a segunda vez, quando o próprio protagonista se mata no final do filme; a terceira aconteceu na vida real – Leslie Cheung tirou a própria vida em 2004, em Hong Kong.
Esta história filmada, incluindo a peça da ópera de Pequim dentro da obra de cinema, chegou aos quatro cantos do mundo. Trata-se da história do rei Xiàng Yǔ que, desesperado com o destino de ser derrotado pelas forças inimigas, passa os últimos momentos de vida com a bela Yù. Estamos no ano de 202 a.C.

Cantando, o rei criou este poema.

“Arranca montanhas, a minha força,
Vão-me pouco favoráveis os tempos:
– Não queres ir, meu Ruão.
Cavalo Ruano, não queres ir
– Que posso eu fazer?
Ó Yu, Yu! Que vai ser de ti?”*

Foi assim que Gil de Carvalho traduziu este famosíssimo poema do chinês clássico, que aprendi a recitar em cantonense na escola. Antes de pôr termo à própria vida, a bela Yù responde, também num poema cantado:

“The foes have overrun our land;
From all around they sing our song.
With might and main my lord can’t stand.
Could a frail woman turn out strong!”

Deste poema existem várias traduções em língua portuguesa, embora não me identifique com nenhuma delas. Escolhi, por isso, esta conhecida versão inglesa, da autoria do tradutor chinês Xǔ Yuānchōng.
O que também é interessante é a especulação à volta do destino de Yù, a Bela, uma vez que aquele que é considerado o primeiro livro de história da China, o “Shiji” (Si Kei, em cantonense), do século I a.C. (“Records of the Grand Historian” ou, em espanhol, “Memorias históricas”), não esclarece a forma como a concubina morreu.
No entanto, esta saga, que foi ganhando novos contornos ao longo da história, cristalizou-se também na peça do mestre e cantor de ópera de Pequim, Mei Lanfang (Mui Lan Fong, em cantonense, 1894-1961), reescrita em 1918. Já as versões cinematográficas do trabalho de Mei ocupam um lugar importante nas histórias do cinema da China continental e de Hong Kong. O próprio Mei é o modelo de Lilian Lee para o protagonista do romance, interpretado por Leslie Cheung na adaptação cinematográfica de Chen Kaige (Chan Foi Ko, em cantonense).
Está feita então a breve apresentação da obra que originou a peça executada pelo meu pai nos anos 80 do século passado.
Vamos agora que interessa: vivo com esta profunda sensação de que ao longo da história chinesa tem havido uma constante “falta de precisão” na reprodução cultural. Passo a explicar: esta peça do meu pai, que representa uma cena em que Yù, a Bela, apresenta uma dança de espada ao rei Xiàng Yǔ, teve como referência um desenho publicado em 1978 pela conhecida e extinta ‘Peking Art and Craft Factory’.
Vamos às incoerências. Em primeiro lugar, a armadura do rei ou comandante do exército não se assemelha às peças de vestuário que existiam no século III a.C. E digo isto com base no que aprendi ainda quando andava na escola secundária, com os livros escolares (publicados em Hong Kong) sobre a história da China. Também o traje de Yù não pertence à época em que esta terá vivido.
Obviamente que não sou especialista na área, mas a armadura do rei e as vestes da concubina transportam-me às obras-primas da cultura pop, criadas pelos figurinistas de Hong Kong e da China continental na segunda metade do século passado, com uma forte influência das óperas tradicionais chinesas. Eu diria que esta “falta de precisão” se deve simplesmente às funções culturais atribuídas a cada peça de artesanato. Ou seja, há peças de arte em que se misturam sem problemas tempos da história chinesa, mas há outras que são executadas segundo exactas referências históricas.

Na peça “Adeus, minha Concubina”, também as armas trabalhadas pelo meu pai – imaginadas e não fruto do desenho original – não existiam nos tempos de Xiàng Yǔ. No entanto, é de notar que estas são das armas mais populares na cultura e história chinesa. Por exemplo, podemos ver o “gládio de Guan”, certamente conhecido dos nossos leitores mais atentos ou daqueles que têm interesse nas divindades veneradas em Macau. Guan Yu (Kuan Ü, em cantonense, ca.160-220) é uma personagem histórica transformada em divindade e muito venerada em Macau e Hong Kong. É adorada, por exemplo, pelas forças policiais e pelas sociedades secretas, uma vez que representa lealdade, altruísmo e irmandade.
Ainda sobre este gládio: segundo descobertas arqueológicas, esta espada apareceu, o mais tardar, na China dos Song (960-1279). Este gládio foi, antes de tudo, uma criação literária do “Romance dos Três Reinos” do século XIV e é hoje o símbolo de Guan, podendo ser visto um pouco por todo o lado em Macau. No filme “The Lost Bladesman” (2011), uma co-produção de Hong Kong e da China continental com realização de Alan Mak e Felix Chong, o herói Guan (interpretado por Donnie Yen) usa justamente este gládio, em contraste com os seus inimigos que se defendem com lanças.
Um outro pormenor sobre esta peça do meu pai: a lanterna, também em marfim, integra no seu interior uma pequena lâmpada. Aí está gravado, além disso, o carácter do apelido do rei: Xiàng: 項. Parece-me haver aqui outra incoerência. Passo a explicar. Digamos que as bandeiras e símbolos desse tempo histórico eram de difícil preservação. Sublinho novamente que não sou especialista, mas para quem cresceu com os filmes e as séries de televisão históricos de Hong Kong, penso ter a capacidade para comparar as bandeiras chinesas desse tempo com um único carácter do reino, com as bandeiras e os escudos romanos. Ora, o carácter Xiàng, gravado pelo meu pai nesta peça, está esculpido ao estilo da escrita moderna, que aparece já na China do século XII. Estamos a falar de uma diferença de um milénio.
Quanto à dança da espada de Yù, a Bela e o seu suicídio – ela terá cortado a garganta – têm muito possivelmente origem na ópera pequinense com Mei Lanfang. Em “The War between Chu and Han” (1957), outro filme que representa a morte da consorte, interpretada por Tang Bik-wan (1924-1991), Yù também se suicida com uma espada. “The War between Chu and Han” é o tipo de filme de Hong Kong do pós-guerra – uma ópera cantonense filmada. Este trabalho foi criado a partir da peça original da ópera de Pequim.
Já na película co-produzida pela China continental e por Hong Kong “The Last Supper” (2012) de Lù Chuān (Lok Chün), Yù, a Bela, interpretada pela actriz cantonense Hé Dùjuān (Ho Tou Kün), mata-se com um punhal no peito. Parece surpreendente, mas como disse anteriormente, o destino de Yù não foi mencionado no “mais antigo” livro da história da China, escrito um século após a morte e a derrota do rei Xiàng Yǔ. Isto apesar do primeiro registo do suicídio ser anterior a esse livro, o “Shiji”.
As histórias de “Adeus, minha Concubina” e do rei Xiàng Yǔ são profundamente conhecidas na “Greater China”. Claro que Macau também segue este fenómeno, até porque inúmeros filmes, séries ou jogos de vídeos foram criados tendo como inspiração esta história. Em Dezembro do ano passado, a Fundação Rui Cunha organizou em Macau um evento intitulado “Ópera na Literatura: Adeus, Minha Concubina de Lilian Lee”. Também o antigo deputado Paul Chan Wai Chi já escreveu sobre a história num dos seus artigos para o jornal Hoje Macau.
Antes de terminar, queria ainda dizer que fiquei contente por ter lido mais uma tradução portuguesa de Gil de Carvalho de parte do poema “A Bela de Yu”, obra do rei Lǐ Yù (Lei Iok, ca.937-978)”.
Encontrei esta versão citada num artigo do meu antigo professor de tradução literária, Yao Jingming:

“Balcões esculpidos, escadas em mármore – hão de permanecer.
Só os rostos, outrora radiantes, mudaram.
Reflete – ai, quanto sofrimento.
É tão-só um rio no pleno fluxo da Primavera
E que corre para o mar, a leste.”

Este foi outro dos poemas que tive que memorizar na escola.


*Pessoalmente, prefiro a seguinte interpretação francesa de Shu-june Jung na sua tese de doutoramento Contribution à létude comparée des systèmes poétiques chinois et français depuis l’époque Zhou jusquà l’aube du XXe siècle” (1993), Jung utiliza várias vezes a palavra hélaspara imitar o ritmo da poesia do estilo Chu (Cho em cantonense), estilo no qual escreve o rei Xiàng Yǔ.

(J)’étais de force à soulever une montagne, hélas!
et à couvrir de tout (mon) souffle le monde entier.
Mais maintenant, les temps (me) sont défavorables, hélas!
(mon) cheval gris ne veut plus avancer!
(Mon) cheval gris ne peut plus courir, hélas !
que puis-(je) faire ?
Belle Yüe! hélas ! belle Yüe! hélas!
Quallons-(nous) devenir?

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