Pequim quer sistema de créditos para professores estrangeiros
Uma nova proposta de Pequim, que estabelece regras para o recrutamento de professores internacionais na China, prevê a criação de um sistema de créditos para os docentes e o despedimento daqueles que “ponham em perigo a soberania nacional”. Professores contactados pelo EXTRAMUROS classificam de “ambígua” a proposta que contempla ainda a formação nacional obrigatória para quem vai dar aulas pela primeira vez no país.
Quem chega à China para trabalhar como professor deve fazer “pelo menos 20 horas” de formação em legislação chinesa, políticas educativas nacionais e ética pedagógica. É o que sugere uma nova proposta de regulamento do governo chinês, que estabelece novas regras para a contratação e gestão dos docentes estrangeiros no país. O documento, divulgado esta semana para consulta pública, prevê o cancelamento dos contratos de trabalho dos professores que “ponham em perigo a soberania nacional, a segurança, honra e interesses públicos” ou “se dediquem à educação religiosa, preguem ilegalmente ou participem em actividades que envolvam cultos”. Abusos sexuais ou violações dos costumes chineses ou códigos de conduta podem também levar ao fim da relação laboral entre docentes e instituições.
“A maioria do que está aqui a ser discutido já é aquilo que se espera dos professores desde que aqui vivo”, começa por dizer Andrew Cardoso, que lecciona história dos Estados Unidos na Universidade Normal de Pequim.
O académico norte-americano, a viver na capital chinesa há sete anos, admite, porém, que o documento de Pequim, que prevê a criação de um sistema de créditos que recompensa ou pune os profissionais do ensino, é “ambíguo e dá espaço a uma ampla interpretação”, nomeadamente no que pode constituir um atentado à soberania nacional. “É possível que o regulamento marque uma expansão daquilo que é politicamente considerado um risco discutir. Mas a redacção da lei é tão vaga que é impossível dizer”, reforça Andrew.
Questionado pelo EXTRAMUROS se sente necessidade de policiar o discurso dentro da sala de aula, o professor de 35 anos, formado em história contemporânea chinesa, admite cautela na abordagem de temas relacionados com a soberania nacional, Taiwan e Hong Kong. Conta Andrew que um dia mostrou na aula um mapa da China em que Taiwan não aparecia como parte integrante do país. “Um estudante fez menção desse momento no final da aula. Não estava chateado, queria apenas que eu soubesse”.
Formação nacional pode dissuadir vinda de bons professores
Numa altura em que a China procura tornar o ensino mais patriótico, erradicando o que considera serem influências estrangeiras, os requisitos de contratação tornam-se também cada vez mais rígidos. Na área do ensino da língua inglesa, por exemplo, a apresentação de documentos que demonstrem experiência profissional ou de certificados válidos de docência de inglês como língua estrangeira é necessária. Ainda assim, há sempre quem consiga contornar o sistema – os professores estrangeiros continuam a trabalhar no país sem documentos adequados e muitas instituições aproveitam-se dessa fragilidade. De acordo com a agência oficial chinesa Xinhua, em 2017, cerca de 400 mil professores estrangeiros trabalhavam no país, mas apenas um terço estava empregado legalmente.
Violet, nome fictício, é professora num jardim-de-infância público, em Xangai, e acredita que esta nova proposta do governo pode servir como um primeiro filtro à selecção de profissionais na área do ensino. “Agora não está a acontecer tanto como quando cheguei a Xangai, porque criaram regras para lidar com a autenticação, a verificação dos graus universitários e cadastros criminais para os professores, mas antes disso não havia qualquer verificação”, nota ao EXTRAMUROS.
A londrina de 27 anos, a viver na China há quatro, menciona ainda uma série de episódios que envolveram professores internacionais e “que deram mau nome à comunidade estrangeira”. No ano passado, foi detido um grupo de docentes em Xuzhou, na província de Jiangsu, por problemas relacionados com droga – um caso denunciado pela imprensa estatal, que pediu a Pequim para eliminar a influência estrangeira das escolas chinesas. O governo acabaria, meses mais tarde, por lançar uma campanha de combate à influência externa na educação, proibindo cursos de história estrangeira e adequando os manuais à ideologia do Partido Comunista.
Ainda no que diz respeito às novas regras, agora apresentadas por Pequim, Violet aponta a ambiguidade de certos termos da proposta – “as leis na China estão constantemente a mudar, mas uma coisa que nunca muda é esse tipo de ambiguidade” – mas assume que, no seu caso, pouco deve mudar na sala de aula, já que muitas das regras foram definidas no contrato de trabalho, como a proibição do ensino religioso ou de temas relacionados com a religião.
Quanto à obrigatoriedade de fazer formação em legislação chinesa, a professora assume que as aulas vão ser muito provavelmente “aborrecidas” e que podem vir a dissuadir aqueles que querem prosseguir uma “carreira séria” na China. “E isso pode atirar-nos para outro ciclo de más contratações”.
Já Andrew Cardoso admite que mais do que estas “lições políticas” que “podem ser muito irritantes”, existem outros momentos no processo de recrutamento que podem desencorajar a vinda de professores estrangeiros para o país: “Os custos associados à verificação do histórico ou das habilitações que é agora necessária para a autorização de trabalho – penso que essa é a maior barreira para os professores que podem trabalhar na minha universidade”.
Muitas escolas operam “sob a política tácita de só contratarem professores brancos”
A cor da pela continua a ser decisiva na altura de contratar um professor estrangeiro. Na China, a preferência por professores brancos, mesmo que sem as qualificações necessárias “ainda é uma realidade absoluta”, lamenta Violet, sublinhando que conhece vários casos de professores certificados, sobretudo na área do ensino da língua inglesa, que não foram seleccionados porque as entidades empregadoras “viram as fotografias de perfil nas redes sociais e desistiram”.
Em Xangai, admite a professora, “muitas escolas operam sob a política tácita de só contratarem professores brancos”.
“No ano passado, tive uma reunião com o meu chefe e expliquei que eu e outra funcionária não nos sentíamos confortáveis com a parcialidade demonstrada na estratégia de contratação, e ele disse coisas muito bizarras, como ‘estou preocupado que as crianças se assustem com um professor tão escuro’”, lembra Violet, defendendo que regras mais rígidas de contratação podem “trazer mais justiça” ao sector.
Por outro lado, a britânica explica que o recrutamento de quadros não qualificados continua a alimentar uma “máquina de fazer dinheiro”, difícil de controlar, e que o facto das regras de contratação de professores estrangeiros não serem mais exigentes é uma forma de “manter o sector e os centros de formação a funcionar”.
“Explicaram-me recentemente que a razão pela qual as escolas do governo abriram, nestes últimos meses, foi porque a actividade destes centros de formação sofreu um duro golpe [com a covid-19]. É um sector massivo, que traz muito dinheiro à China. Claro que que os centros de formação e as escolas não podiam abrir portas, a menos que as escolas do governo liderassem o caminho”.
De acordo com o jornal China Daily, em 2018, a China tinha mais de 50 mil centros de formação de inglês em todo o país.
Ainda sobre esta proposta:
- As regras aplicam-se a todos os professores estrangeiros, contratados por instituições de ensino, que tenham autorização de trabalho e de residência;
- As instituições devem dar formação de pelo menos 20 horas aos professores que são contratados pela primeira vez, e o conteúdo deve incluir temas como a constituição chinesa, legislação, ética na educação, políticas educativas e conhecimento pedagógico;
- Todos os professores estrangeiros devem apresentar habilitações e competências pedagógicas necessárias. Aqueles que trabalham na área das línguas estrangeiras e literatura, por exemplo, devem ter, no mínimo, o grau de bacharelato, e mais de dois anos de experiência profissional no ensino das disciplinas em causa ou experiencia de trabalho na área da educação;
- Os docentes não podem ter registo criminal, doenças infecto-contagiosas ou historial de doenças de foro mental, de assédio sexual ou de consumo de estupefacientes;
- Deve ser criada uma plataforma nacional, onde as instituições educativas deverão registar-se, dar informações e procurar dados sobre professores internacionais;
- Vai ser estabelecido um sistema de créditos para professores estrangeiros que recompensa os cumpridores da lei e pune os infractores. As instituições devem inserir informação relativa aos créditos na plataforma nacional, mencionada acima.
O regulamento proíbe:
- palavras e acções que ponham em perigo a soberania nacional, segurança, honra e interesses públicos
- ser responsabilizado criminalmente
- obstruir a implementação da política educativa
- violar a gestão da segurança pública, como o consumo de drogas
- a agressão sexual ou o abuso de menores
- dedicar-se à educação religiosa, pregar ilegalmente
- dedicar-se a actividades de culto
- o assédio sexual de estudantes ou outras violações sérias à ordem pública, bons costumes, ética dos professores e códigos de conduta
- fornecer informação falsa no processo de candidatura profissional