O vírus do ‘Big Brother’
“Estou furioso. O meu supervisor pediu-me para enviar uma fotografia minha (‘selfie’) a cada meia hora e partilhar a minha localização em tempo real através do WeChat [a principal rede social chinesa]”, escreveu Chen Renyi, funcionário de uma empresa em Pequim, na Maimai, versão chinesa do LinkedIn, rede social específica para profissionais.
A queixa revela o lado negro de um efeito secundário causado pelo surto do novo coronavírus, conhecido por Covid-19, no mercado de trabalho chinês: fomentar o trabalho remoto, uma tendência que até agora se tinha feito sentir de forma bastante mais lenta na China do que no Ocidente.
Desde que o Partido Comunista decretou quarentena, com milhões de pessoas obrigadas a ficar em casa, as aplicações criadas para ajudar as empresas chinesas a gerir o teletrabalho viram a sua popularidade disparar.
Segundo a Sensor Tower, entre 22 de Janeiro e 20 de Fevereiro os descarregamentos da Lark, uma aplicação da ByteDance, a empresa que desenvolveu também a aplicação de partilha de vídeos curtos TikTok, subiram 6085 por cento.
Também os descarregamentos da DingTalk aumentaram 1446 por cento em comparação com igual período de 2019. A aplicação lançada pelo gigante chinês do comércio electrónico Alibaba chegou mesmo a ser a mais popular na China no início de Fevereiro.
Inesperadamente, o sucesso da DingTalk foi mal recebido quando a aplicação adicionou ferramentas para permitir o ensino à distância. Os estudantes chineses, que contavam já com umas férias prolongadas, retaliaram, inundando a empresa com avaliações negativas.
A DingTalk respondeu de forma bem-humorada, publicando no Bilibili, um serviço chinês de transmissão, um vídeo musical animado em que diz compreender a frustração dos “jovens heróis” que “não esperavam umas férias tão produtivas”.
Trabalhadores sob vigilância
Outras queixas foram bem mais sérias. Além de Chen Renyi, muitos outros cibernautas usaram a Maimai para denunciarem a imposição, nomeadamente por parte de grandes empresas chinesas, de regras espartanas e intrusivas no trabalho a partir de casa.
Uma funcionária da Meituan Dianping acusou o maior grupo chinês de entrega de comida ao domicílio de exigir aos trabalhadores que mantenham sempre a câmara ligada no computador. “Senti-me tão sufocada”, disse a jovem.
Wu Tiantian viu o seu salário cortado em mil yuan (128 euros) por participar numa teleconferência enquanto estava ainda de pijama. A cibernauta disse que a empresa para a qual trabalha, ligada à Internet, exige aos funcionários que participem em duas teleconferências todos os dias, às 9 da manhã e 6 da tarde, e que demorem no máximo 10 minutos a responder a mensagens de cariz profissional.
Alguns chegaram ao ponto de dizer que sentiam saudades do infame horário “996” (das nove da manhã às nove da noite, seis dias por semana).
Muitos outros admitiram que a experiência de trabalhar a partir de casa os tinha deixado tão desiludidos que estavam a pensar em procurar um novo emprego. Aliás, um estudo de opinião de uma agência chinesa de recrutamento disse que mais de um terço (33,8 por cento) dos inquiridos planeavam mudar de empresa após o surto.
As queixas dos funcionários são, em parte, uma resposta natural à introdução apressada de um modelo diferente por parte de empresas que não estariam preparadas para isso. Mas, por outro lado, reflectem um problema bem mais enraizado na cultura laboral chinesa: uma excessiva hierarquização.
Como escreveu Chen Renyi, “desconfio que o meu supervisor não confia realmente em mim”. Esta falta de confiança nasce de um sistema que exige aos trabalhadores provas de lealdade e dedicação, mas não lhes concede qualquer protecção contra os desmandos, em particular dos grandes grupos económicos chineses.
Lições de moral
A vigilância sobre os funcionários é também um sintoma do desdém generalizado com que a China encara o direito à privacidade. Vários estudos revelam que os consumidores chineses aceitam, mais facilmente do que os europeus e norte-americanos, conceder acesso aos seus dados privados em troca de maior conveniência.
Mas a utilização da cibervigilância atingiu um novo pico durante o surto. Empresas privadas – incluindo o mais popular sistema de pagamento electrónico na China, a AliPay, e o WeChat – ajudaram o regime comunista a refinar o controlo (e restrições) sobre os movimentos dos cidadãos.
O sucesso da China no combate à pandemia, que contrasta com o actual estado de emergência no Ocidente, ameaça encobrir não apenas a tentativa por parte do Partido Comunista de abafar o eclodir do surto, cujas consequências foram desastrosas para o resto do mundo, mas também as muitas violações de direitos humanos cometidas pelo regime durante os últimos dois meses.
O mundo corre o risco de aprender a lição errada, ou seja, de que só uma abordagem autoritária como a chinesa consegue resolver este tipo de situações. Isto embora estudos académicos defendam que são as democracias as mais eficientes no combate a epidemias.
Mesmo no caso do coronavírus, o modelo da Coreia do Sul, baseado na transparência e na cooperação com a sociedade civil para lançar uma vasta campanha de rastreio, mostra que não é necessário sacrificar as liberdades e direitos fundamentais a troco da saúde pública.
Imagem de destaque: S. Hermann e F. Richter (pixabay.com)