Memórias em tempos de coronavírus
Lembro-me da Mathilde me ligar de Macau a chorar e a dizer que se sentiria tão triste se não pudesse regressar a Hamcheu (Hangzhou) para prosseguir os estudos na China e continuar a ter aí a vida que tanto gosta. Encontrando-me em Berlim, senti-me inicialmente bastante afastado de todos os problemas que diziam respeito ao surto do novo no coronavírus. Mas há já algum tempo que devo reconhecer que a minha indiferença para com o assunto passou e que leio com grande desespero as notícias em cantonense, nomeadamente as da Radio Television Hong Kong, bem como os comentários nas redes sociais da China e do “resto do mundo”.
Nunca me senti tão intelectualmente perdido. Ao desamparo que sinto com o meu doutoramento, eis que se adicionam os novos problemas desta epidemia cuja evolução é tão dolorosa de acompanhar. Neste momento, ser-se macaense em Berlim é, tenho de o dizer, ironicamente prático. Com efeito, estar geograficamente longe de um problema permite-nos comentar e olhar para ele enquanto observador exterior cuja legitimidade é salvaguardada pelo facto que ser “alguém de lá” – embora esteja há já sete anos fora. A minha situação geográfica é, além disso, prática, uma vez que me deixa ver as coisas de uma perspectiva que não seria a mesma se tivesse permanecido em Macau.
Não sei se é a distância geográfica ou o meu egoísmo – ou será que é o meu individualismo (confundo muitas vezes estas duas ideias) – que me deixam paralisado, fazendo de mim um “puro” observador das coisas. Tenho a tendência a acreditar que, enquanto seres humanos, tanto o nosso interesse como a compreensão das coisas são sempre, de alguma forma, determinados pelas línguas e pelas nossas emoções. No meu caso, este facto é ao mesmo tempo uma vantagem e uma desvantagem: sinto-me tão egoísta por me preocupar apenas com as regiões de língua chinesa neste momento específico.
O meu pai era uma criança inocente quando testemunhou os horrores da Revolução Cultural, na China, imigrando ilegalmente para Macau, ainda o território era português. Para me proteger, sempre se esforçou muito para me convencer a “não tocar nas coisas da política”. Com o objectivo único de proteger os filhos, o meu pai tinha – como gosto de assim julgar – toda as suas razões para tentar ensinar-me a olhar com indiferença para os assuntos “políticos” e, quando penso na forma como eu próprio me censurava quando ainda estudava tradução na administração de Macau, lembro-me como fazia um esforço para me recordar incessantemente que a educação do meu pai a favor de uma “neutralidade política” teria uma grande influência sobre mim.
Sinto-me sempre envergonhado quando dizem que fui corajoso em me virar para o domínio da antropologia visual, que não é tão diferente da minha área de base, a tradução administrativa. Se me sinto envergonhado, não é porque pense que estas duas áreas não se tocam uma à outra, mas porque sinto que nunca arrisquei realmente nada. Mesmo fora, tive desde sempre o apoio de Macau, seja do governo ou da minha família. E quando imagino que o meu pai arriscou a própria vida para atravessar a nado a fronteira marítima entre a China e este pequeno enclave europeu, no final dos anos 1970, a minha própria adaptação a outras culturas não parece de modo algum grande coisa.
A minha irmã, que é encenadora em Macau e Taiwan, fez um trabalho sobre a imigração clandestina, baseando-se na história do meu pai. Tive a sorte de poder ver esta peça de teatro ao lado dele e da Mathilde, no Centro Cultural de Macau. À vista do protagonista, que encarnou a vida do meu pai e se lançou no mar (os portugueses de Macau dizem sempre “o rio”, mas esta palavra retira o dramatismo à minha história), não pude conter as lágrimas que quis inicialmente esconder do meu pai. A maneira como ele um simples office boy de casinos, outrora artesão de marfim cuja posição política já expliquei acima, ficou ao longo destes anos tão revoltado contra as injustiças, comoveu-me imensamente.
Sento-me à frente do meu computador, sinto-me ao mesmo tempo envergonhado e obrigado a escrever sobre o que sinto, uma vez que não sou – ou pelo menos não quero ser – aquele sinólogo que serve apenas o divertimento de apresentar as pequenas curiosidades de uma China antiga que, aliás, não existe há já demasiado tempo. Deixo-me levar pelos meus próprios pensamentos e escrevo sem muito reflectir naquilo que convém dizer e no que convém calar.
Quando ainda estava na escola, aprendi a recitar uma incontornável peça de literatura da China clássica, de Fan Chung-yen (989-1052). Uma velha tradução de Georges Margouliès, em 1926, que encontrei aqui na Universidade Livre de Berlim, diz:
Leur tristesse devançait la tristesse de tout l’empire, leur joie venait après la joie de tout l’empire.
先天下之憂而憂
後天下之樂而樂
Eis aqui a minha interpretação destes versos:
Preocupamo-nos antes que o mundo se preocupe,
Regozijamo-nos, contudo, apenas depois de o mundo se regozijar.
Penso muitas vezes nestes versos, mas infelizmente não me sinto capaz de os pôr na prática. Enfim, estes são apenas alguns pensamentos que atravessaram hoje o meu dia e que aqui expus, como uma espécie de saudação intelectual.