NBA vs China
“Luta pela liberdade. Força Hong Kong”. Foi este o ‘tweet’ de Daryl Morey, director-geral da equipa norte-americana de basquetebol Houston Rockets, que no início do mês abriu uma caixa de Pandora que ameaça atingir o lucrativo negócio da Associação Nacional de Basquetebol (NBA, na sigla inglesa) na China.
Como forma de retaliação, a televisão estatal chinesa CCTV não transmitiu os jogos inaugurais de nova temporada da NBA, que arrancou este mês. Mesmo a Tencent, uma empresa privada que detém os direitos de transmissão da NBA pela Internet na China, escolheu transmitir apenas uma partida, em vez de difundir todas como aconteceu na época passada.
Numa abordagem inicial, este parece ser mais um ‘faux-pas’ por parte de empresas ocidentais que conseguiram ofender a sensibilidade chinesa. Uma lista que já vai longa e inclui nomes como a Dolce & Gabbana, que lançou um vídeo publicitário onde uma jovem chinesa tentava, sem grande sucesso, comer pizza e outras especialidades italianas com pauzinhos.
Há, no entanto, várias diferenças que podem torná-lo um interessante caso de estudo. Ao contrário de simples demonstrações de insensibilidade cultural, este incidente envolve algo mais, nomeadamente a liberdade de expressão, cuja protecção é encarada com um fervor dogmático nos Estados Unidos.
Ao contrário de tantas outras empresas que rapidamente fizeram um incondicional pedido de desculpas à China para evitar males maiores, a NBA foi bem menos expedita. Aliás, o comissário da liga, Adam Silver, defendeu publicamente a “liberdade de expressão política” de Daryl Morey perante pressões do governo chinês para que o executivo dos Houston Rockets fosse despedido.
A relutância da NBA em se render explica-se em parte pela tensão causada pela guerra comercial entre os dois países, que criou nos Estados Unidos uma visão da China como, na melhor das hipóteses, um concorrente que não joga limpo, e no pior dos casos, um inimigo maquiavélico.
Por outro lado, a popularidade da NBA no concorrido mercado desportivo dos Estados Unidos depende em muito de uma audiência jovem e afro-americana, para quem a liga se tem destacado ao deixar os atletas – a maioria dos quais são afro-americanos – ter uma voz em assuntos controversos como por exemplo a regulação do acesso a armas de fogo.
Ceder à China neste caso poderia ameaçar a imagem interna da NBA como uma liga defensora da liberdade de expressão. Só que, para muitos cibernautas chineses, se os norte-americanos podem apoiar os “separatistas” ou “traidores” de Hong Kong, então também eles podem demonstrar apoio pelos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001.
Tomar partido
Certamente que houve já muitos outros casos em que empresas estrangeiras foram obrigadas a dar o braço a torcer em questões políticas, sobretudo no que toca ao estatuto de Taiwan. Mas o público internacional quer lá saber se uma companhia aérea deve ou não utilizar a bandeira da Formosa na sua página da Internet.
Pelo contrário, a opinião pública ocidental tem seguido com muito interesse os protestos em Hong Kong. E, apesar do aumento da violência contra a polícia e vandalismo contra empresas consideradas apoiantes do Partido Comunista, o público, tanto norte-americano como internacional, continua do lado dos manifestantes.
Por isso mesmo têm-se multiplicado as manifestações de norte-americanos antes e durante os jogos da NBA, não só a favor do movimento pró-democracia de Hong Kong, mas também de outras causas que envolvem a China, nomeadamente a repressão contra os uigures, uma minoria étnica muçulmana natural da província de Xinjiang.
O mesmo apoio que obrigou a produtora de jogos electrónicos Blizzard a voltar atrás na decisão de banir um jogador profissional do jogo de estratégia Hearthstone, Ng Wai-chung, natural de Hong Kong, que demonstrou apoio para com os protestos, durante uma transmissão em directo.
Paixões divididas
Além disso, a NBA está numa posição bem mais forte do que outras marcas internacionais que viram as suas vendas na China cair em flecha após incidentes semelhantes. Isto porque a NBA é a mais popular liga de basquetebol no mundo. Mesmo no pico da polémica, os bilhetes para os jogos de pré-época da NBA marcados para cidades chinesas rapidamente esgotaram.
Na época passada, cerca de 490 milhões de chineses – mais de um terço da população – viu jogos da NBA através da Tencent. Não é realista esperar que tanta gente seja suficientemente nacionalista para passar a ver só a liga chinesa de basquetebol, cujas estrelas não estão no mesmo patamar, nem de perto nem de longe.
A paixão dos chineses pela NBA, a mais popular competição desportiva na China – ultrapassando mesmo, por exemplo, a Liga dos Campeões do futebol europeu – explica a reacção menos fervorosa do que o costume da opinião pública chinesa ao comentário de Daryl Morey.
Veja-se o caso de um adepto chinês dos Houston Rockets que ameaçou no Weibo, o equivalente chinês do Twitter, queimar a bandeira chinesa, desafiando a polícia a apanhá-lo. O jovem de 25 anos da província de Jilin foi preso umas horas depois.
A tensão entre a NBA e a China reflecte os limites que a pressão da poderosa máquina estatal, económica e mediática do Partido Comunista pode ainda assim ter num mundo globalizado. A esmagadora maioria da população chinesa pode não se importar por não ter acesso às redes sociais ocidentais, tendo crescido sem elas. Mas à medida que a economia da China se abre mais ao mundo, por necessidade mais do que por vontade política, o consumidor chinês vai aceitar cada vez menos ter as suas escolhas limitadas, mesmo que seja pela “dignidade da nação”.