Quando Macau era “o último destino da esperança”
“Macau é o último destino da esperança”. Foi desta forma que o escritor e jornalista italiano Tiziano Terzani (1938-2004) intitulou a crónica que escreveu para a revista alemã “Die Spiegel”, publicada poucas semanas depois da assinatura da Declaração Conjunta Luso-Chinesa (Sino-Portuguesa) ou dois meses depois do meu nascimento em Macau, em 1987.
Terzani escreve assim: “‘Macau é o último destino da esperança’, diz o padre Mário Acquistapace, que fugiu dos comunistas da China em 1949 [1952] e dos comunistas de Saigão em 1975 e que agora dirige uma pequena igreja na ilha de Coloane.”
Desde então, o mundo e Macau têm estado a mudar de forma tão acelerada que há muito nesta cidade que já não reconhecemos. Numa entrevista em cantonense, concedida em 2017 à “Memória de Macau”, um projecto da Fundação Macau, o secretário para os Transportes e Obras Públicas, Raimundo do Rosário fala sobre o status quo do território, “sem mudanças durante 50 anos”. “Mas é impossível não haver mudanças. Daí surge a discussão sobre se se muda de mais ou de menos…”, completou.
Já confessei várias vezes nos artigos que publico em português e em alemão que faço parte da geração da transição que acredita no discurso do intercâmbio entre o Oriente e o Ocidente. Os portugueses de Macau, para mim e já há muito tempo, não são exóticos, mas parte da nossa sociedade. É com eles que Macau se completa, é com eles que Macau salvaguarda a sua diversidade cultural e é com eles que podemos continuar a viver literalmente num intercâmbio entre o Oriente e o Ocidente.
Um passado que parece tão presente
O tema de Macau representado no estrangeiro fascinou-me desde sempre. Ao fazer uma pesquisa sobre as (poucas) reportagens televisivas produzidas aqui no continente europeu – sobretudo na Europa Central – redescobri vários trabalhos franceses dos anos 1960 que apresentam temas ainda hoje muito actuais. Há aspectos em Macau que permanecem inalterados, como o consciente distanciamento da generalidade da população pela actualidade política.
Nos parcos trabalhos que consigo encontrar na internet sem sair de casa, destaca-se a reportagem de meia hora “Macao: entre Salazar et Mao”, do jornalista canadiano Pierre Mignot para o programa franco-suíço “Continents sans visa”. Este trabalho foi difundido na Suíça em Setembro de 1966, poucos meses antes do “Incidente (ou Motim) 1-2-3”. Depois de uma cena de abertura, que revela o habitual exotismo do Extremo-Oriente, Mignot apresenta Ho Yin (1908-1983), líder da comunidade chinesa de Macau, da seguinte forma: “Entre o governo do presidente [do Conselho de Ministros] Salazar, que não reconhece a China popular, e Pequim, que considera nulos os direitos de Portugal sobre Macau, há uma coexistência pacífica tácita, cujo honorável senhor Ho Yin, presidente da Câmara [Associação] Comercial de Macau, é o melhor símbolo.”
Entrevistado em inglês e a ler um manuscrito preparado anteriormente, a resposta de Ho em cantonense foi assim dobrada para francês: “Eu sou membro do Conselho Legislativo de Macau [actual Assembleia Legislativa] e aí o único representante da comunidade chinesa junto do governo português. Aliás, sou membro do Conselho Político da República Popular da China [actual Conferência Consultiva Política do Povo Chinês] e, uma vez por ano, vou a Pequim para a sessão desta assembleia.”
Mas, para quem percebe cantonense, ouve-se por trás a voz de Ho a dizer o seguinte: “Em primeiro lugar, saúdo as senhoras espectadoras e os senhores espectadores da televisão. Macau é uma cidade calma, pacífica e cada vez mais próspera, tendo-se tornado um foco de atenção no mundo. Quanto ao governo de Macau, sou vogal do Conselho Legislativo e o representante da comunidade chinesa no mesmo.”
Além da forma muito própria de falar cantonense, típica na época, é-me muito familiar este tipo de discurso em cantonense e a forma de se apresentar na televisão de Macau nos anos 1990, na primeira década deste século e no presente.
Mignot continua em francês: “Quando me mostro surpreendido com esta dupla pertença aos dois governos que se ignoram oficialmente, o senhor Ho Yin, sorridente, fez saber que prefere não abordar este problema.”
(Ainda) entre o Oriente e o Ocidente
Aqui quero abrir parênteses. Como sabemos, o discurso de Macau enquanto fruto ou resultado do intercâmbio entre o Oriente e o Ocidente é um produto indirecto da Declaração Conjunta entre a China e Portugal. Antes disso, coexistiam vários discursos ou versões de histórias de Macau e da sua origem. O debate político e ideológico nas representações de Macau nos livros de história foi diminuindo depois de vários acontecimentos históricos, nomeadamente o 25 de Abril e, naturalmente, o período de transição. Aliás, esta pode ser esta a causa de Macau ser um tema pouco atraente para os jornalistas estrangeiros.
Passamos agora muito rápido pelo Verão de 1984, meses antes da assinatura da Declaração Conjunto Sino-Britânica. Com o objectivo de “melhor conhecer a história de Hong Kong e da sua origem”, um conhecido estudioso de Hong Kong, Richard Ho (何文匯) apresentou um episódio de 25 minutos sobre Macau (sem contar com a publicidade), em cantonense, que fazia parte de uma série de documentários televisivos da Rádio Televisão de Hong Kong, “Archaeology and Antiquities” (百載鑪峰).
Nos primeiros sete minutos, Richard Ho explica as rotas marítimas portuguesas pelo Extremo-Oriente. Apresenta ainda a razão pela qual os portugueses foram autorizados a fixar-se em Macau: pelo mérito de deterem piratas e por terem subornado os mandarins. Esta é uma das versões sobre a origem do estabelecimento dos portugueses em Macau da época e não é a que costuma constar do discurso público em Macau, pelo menos entre os falantes de cantonense.
Aliás, no fim da primeira parte – e antes da publicidade – há uma passagem de menos um minuto na qual Richard Ho conversa, em inglês, com o Padre Manuel Teixeira (1912-2003) no velho Seminário S. José. É pena que o documentário seja feito à base da narração do autor e sem entrevistas, porque seria um prazer ver o Padre Teixeira legendado num programa da televisão de Hong Kong. Ng comenta: “No seu rosto, era como se estivesse a ver o espírito de perseverança daqueles eruditos jesuítas nas suas missões à China ao longo de mais de quatrocentos anos.”
Regressemos agora a 1969, quarto ano da Revolução Cultural. Uma das mais interessantes reportagens de televisão disponibilizadas pelo Institut national de l’audiovisuel de França, transmitidas no programa “Point contrepoint”, fala sobre Macau. Trata-se de uma reportagem de seis minutos, filmada a cor e realizada por Jean Baronnet com o jornalista Jean-François Chauvel (1927-1986), que era natural de Pequim.
“Em 26 de Outubro há também eleições em Macau, cidade-província aos pés do gigante chinês na foz do Rio das Pérolas: 300.000 habitantes, 3.000 eleitores”, ou seja, 1%. Assim reportou Chauvel. Não sem um tom irónico. Ao mesmo tempo, são filmadas as antiquíssimas instalações do actual Instituto para os Assuntos Municipais e também Nobre de Carvalho (1910-1988), então governador colonial cujo mandato atravessou praticamente todo o período da Revolução Cultural, de 1966 até 1974.
Suponho, portanto, que se tratava da reeleição de um vereador do Leal Senado. Hoje não existem as câmaras municipais nem as eleições por sufrágio directo (ainda que parcial) para as suas assembleias.
Volto de novo à reportagem de 1966, produzida na véspera da Revolução Cultural. Questionado sobre se as escolas de língua chinesa tinham mais simpatia pelos nacionalistas ou comunistas, o Padre José Barcelos Mendes (1926-2006), então professor de francês do Seminário S. José, respondeu assim a Pierre Mignot: “Vous connaissez les Chinois. Les Chinois n’aiment pas la politique.” (“O senhor conhece os chineses. Os chineses não gostam de política”)
E parece que Macau tem permanecido assim até hoje. Fico mesmo impressionado quando vejo tais relatos históricos, que parecem autênticos “déjà vus” neste século XXI.
As razões deste eventual alheamento da política ao longo da História mereciam um aprofundado estudo político e antropológico. Apesar disso – e embora esteja longe – vejo hoje maior participação e consciência pública por parte dos jovens.
Estação de esperança
Macau, embora geograficamente distante de mim – a 8715 quilómetros de Berlim – está sempre presente na minha vida. Escrevo artigos de opinião para a imprensa lusófona local (Jornal Tribuna de Macau) – embora prefira dizer que são “reflexões” – e costumo acompanhar a actualidade noticiosa. Macau mantém-se “vermelha”, como os jornais alemães com tanto prazer já julgaram, mas permanece ao mesmo tempo “singular”, como euforicamente costumamos dizer, uma vez que o seu lado lusófono é um indicador da salvaguarda persistente da diversidade cultural.
Não me importo de voltar a insistir aqui na frustração que sinto quando me apercebo da invisibilidade de Macau no Continente europeu, naturalmente com excepção de Portugal. Contudo, sobrecarregado pela informação e notícias do mundo, pergunto-me como insisto ainda em mencionar Macau nesta parte do globo, onde a região não é mais do que um detalhe na relação triangular entre a China continental, Hong Kong e Taiwan, tanto nos meios de comunicação como na academia. Mas apesar disso, evoco o que aprendi na cadeira de biologia na escola: cada organismo da cadeia alimentar é essencial para o ecossistema. Macau pode carecer de importância jornalística no contexto mundial, mas isso não quer dizer que não tenha valor, nomeadamente na antropologia e na contribuição teórica dos estudos pós-coloniais.
Nota-se que quando os franceses ou os alemães falam de Macau têm a necessidade de fazer uma introdução sobre uma cidade exótica, para captar o interesse das audiências antes de apresentarem o tema específico da notícia em causa. É algo que não acontece quando se fala dos jornalistas lusófonos, que vão directamente ao assunto, ou porque vivem em Macau ou porque a cidade faz parte da história de Portugal e é conhecida do público.
Em 2007, antes de embarcar para o curso de português em Coimbra, escrevi o meu primeiro comunicado para a imprensa de língua portuguesa. Em 2010, no ano em que terminei os meus estudos portugueses na Universidade de Macau em 2010 – e sendo o jovem inconformado e interessado que era – já escrevia voluntariamente notícias num blogue. Era uma espécie de agência noticiosa onde eu era o único funcionário. Isso aproximou-me dos jornais de língua portuguesa e, desde então, valorizo ainda mais o trabalho que os jornalistas portugueses têm feito em Macau.
Em jeito de conclusão, queria apenas dizer que me sinto muito grato às e aos jornalistas de língua portuguesa a trabalhar em Macau. O seu trabalho marcou muito o meu crescimento durante os cinco anos em que estudei português na universidade.
Há que continuar a ter esperança nesta estação!