Um conto de dois julgamentos
“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, (…) a primavera da esperança, o inverno do desespero”. Começa assim “Um Conto de Duas Cidades”, de Charles Dickens. Foi esse também o sentimento que tive no passado dia 2 de Dezembro, ao ver as notícias vindas de duas cidades tão diferentes: Hong Kong e Pequim.
Na capital chinesa vivia-se a primavera da esperança, no arranque do julgamento de Zhu Jun, um popular apresentador da televisão estatal chinesa CCTV, acusado de assédio sexual, naquele que é o mais mediático caso do movimento #MeToo na China. Após surgir nos Estados Unidos, o movimento anti-violência de género chegou à China em Janeiro de 2018 e levou à demissão de um professor da prestigiada Universidade de Beihang.
O Governo Central rapidamente accionou a máquina da censura para prevenir uma eventual emancipação feminina mas o movimento ganhou raízes apesar do solo pouco favorável.
No ano passado, as autoridades chinesas autorizaram os tribunais a aceitar casos de assédio sexual. Em Julho, a justiça deu razão a uma assistente social de Chengdu, metrópole do leste da China, e condenou o antigo patrão a apresentar desculpas públicas.
A 2 de Dezembro foi a vez de uma argumentista de 27 anos que acusa Zhu Jun de a ter apalpado e beijado à força em 2014, quando estagiava na CCTV. Zhou Xiaoxuan esperou dois anos para que o seu caso fosse finalmente ouvido pela justiça. Dezenas de mulheres reuniram-se em frente ao Tribunal de Popular de Haidian, em Pequim, para apoiar a jovem. “Juntas, queremos exigir respostas à história”, dizia um cartaz. A China onde, como disse Mao Zedong em 1968, “as mulheres sustentam metade dos céus”, nunca passou das palavras no que toca à igualdade de género. À entrada para o tribunal, Zhou Xiaoxuan, conhecida por Xianzi, disse esperar que o caso encorajasse as vítimas de violência de género a vir a público. Um mês depois, num país conhecido pela rapidez dos seus julgamentos, o processo não avançou mais.
Linhas vermelhas
Também a 2 de Dezembro, mas a dois mil quilómetros de distância, adensava-se em Hong Kong o inverno do desespero, com a condenação de três activistas a penas de prisão. Joshua Wong (13 meses e meio), Agnes Chow (10 meses) e Ivan Lam (sete meses) foram considerados culpados de promover “reuniões ilegais” durante os protestos pró-democracia de 2019.
Num dia negro para as liberdades fundamentais em Hong Kong, foram acusados de fraude três dirigentes do Apple Daily, o jornal mais popular da cidade, incluindo o proprietário, Jimmy Lai. O empresário pró-democracia já tinha em Agosto sido detido por alegado conluio com potências estrangeiras, ao abrigo da nova lei de segurança nacional.
O contraste entre as duas cidades poderia ser um exemplo de como a repressão política e social tem sido aplicada de forma diferente em diferentes partes da China. Mas, tal como acontece no caso dos tibetanos e dos uigures, a geografia não é o mais importante. A verdadeira fronteira são as linhas vermelhas delineadas pelas autoridades chinesas, que silenciosamente vão mudando, como os vizinhos da minha avó que, ao abrigo da noite, saíam a mudar os marcos dos terrenos agrícolas.
Como se vê pela recente condenação de 12 manifestantes antigovernamentais de Hong Kong por um tribunal da vizinha cidade de Shenzhen, neste momento o Partido Comunista não tolera qualquer pio de dissidência vinda da região autónoma.
A condenação, na segunda-feira, da jornalista Zhang Zhan por escrever sobre o fracasso do regime chinês em controlar o surto inicial de covid-19 em Wuhan – na véspera da chegada à China de investigadores da Organização Mundial de Saúde – mostra como questionar o discurso oficial de vitória gloriosa do Partido Comunista sobre a pandemia é uma outra linha vermelha.
Lobos e dissidentes
Pelo contrário, a repressão em torno das questões de género e de sexualidade recuou. Aliás, o Governo Central, que tem por instinto prevenir toda e qualquer manifestação pública, permitiu que dezenas de pessoas se juntassem para apoiar Xianzi. O recuo da linha vermelha pode, no entanto, ser temporário. Uma activista feminista que esteve agora à porta do tribunal em Pequim estava há cinco anos a ser detida pela polícia por planear uma campanha anti-assédio sexual. Houve quem nas redes sociais ocidentais tenha ligado os dois julgamentos, procurando uma fonte comum de dissidência. Mas, segundo a minha experiência pessoal, a maioria das mulheres que foi ao tribunal encorajar Xianzi encara o movimento pró-democracia em Hong Kong como um grupo de radicais anti-chineses separatistas. Por outro lado, um segmento dos manifestantes em Hong Kong tem há muito demonstrado tiques de extrema-direita, incluindo sentimentos xenofóbicos perante os chineses do continente e retórica discriminatória face às mulheres e minorias.
O discurso mediático no Ocidente tem tendência a dividir o povo chinês entre os dissidentes anti-Partido Comunista e os nacionalistas rábidos estilo “lobo guerreiro”. A realidade é muito mais complexa, reflectindo uma intersecção de história familiar, identidade, classe, género e educação.
Fotografia de destaque: BCFC (Shutterstock)