As longas teias que prendem os exilados tibetanos
A China fecha sistematicamente as portas aos exilados tibetanos que pretendem regressar à terra natal para visitar a família. Mesmo aqueles que obtêm um visto são ameaçados e aliciados a espiar outros membros das comunidades tibetanas no estrangeiro, diz uma especialista em assuntos tibetanos.
Sonam Lama, dono de uma loja de produtos tibetanos e residente no bairro lisboeta da Mouraria, está à espera de completar o longo processo de obtenção da nacionalidade portuguesa. O exilado já sabe o que vai fazer quando tiver um novo passaporte na mão: “Quero pedir um visto para visitar a minha família no Tibete”.
Um sentimento comum entre os cerca de 120 mil tibetanos no exterior, diz ao EXTRAMUROS Françoise Robin. “Estamos a falar de uma geração que já ultrapassou os 40 anos, que está no estrangeiro há algum tempo e quer visitar os pais, antes que eles morram”, explica a directora do Departamento de Estudos Tibetanos do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais (Inalco), em França.
Tal como acontece com outras comunidades emigrantes, “não podes ser um bom filho se não fizeres tudo o que estiver ao teu alcance para rever os teus pais uma última vez”, sublinha Françoise. “É esta a terrível tragédia dos tibetanos: terem de abandonar a sua terra sem qualquer certeza de algum dia poderem voltar”, lamenta a académica.
Muitos dos exilados deixaram a região ainda muito jovens por acharem que “não é mais possível viver uma verdadeira vida tibetana” devido às restrições impostas ao ensino e uso da língua, à religião budista e ao acesso ao emprego, diz Françoise. “É um sentimento de já não estarem na sua própria terra”.
Desde 2002 que os tibetanos que solicitam um passaporte para poder viajar para o estrangeiro vêm o pedido sistematicamente rejeitado, após anos de espera e sem que lhes seja dada qualquer justificação, refere a Human Rights Watch. “Para um tibetano é mais difícil conseguir um passaporte do que chegar ao céu”, escreveu um cibernauta em 2012.
Sem passaporte, a única forma de sair do planalto tibetano é atravessar ilegalmente a cordilheira dos Himalaias até ao vizinho Nepal, explica Françoise Robin. Foi o caso de Sonam Lama, que ficou no país e obteve mesmo a nacionalidade nepalesa.
Uma longa marcha
Mas para a maioria dos exilados tibetanos, diz Françoise Robin, o Nepal é apenas uma paragem onde pagam a um “passador” que os ajuda a chegar ao destino sagrado, Dharamshala. Foi nesta região do norte da Índia que o líder espiritual budista Dalai Lama se refugiou após fugir do Tibete durante a revolta de 1959 contra a ocupação chinesa.
Mesmo antes da chegada da Internet, já os tibetanos sabiam que era em Dharamshala que havia “uma comunidade tibetana livre, onde era possível obter educação em língua tibetana, algo muito importante para os tibetanos”, sublinha a professora do Inalco. Como tal, muitos monges e monjas procuram a região para ter acesso a “uma vida verdadeiramente budista” e para conhecer o Dalai Lama.
Mas nem tudo são rosas em Dharamshala – também conhecida como ‘pequena Lhasa’, em referência à capital do Tibete – e muito exilados rapidamente se desiludem. A Índia é um país com um clima muito mais quente do que o frio planalto tibetano, e que não reconhece os refugiados políticos, lamenta Robin.
Como tal, muitos exilados tentam partir de novo, desta vez para o Ocidente, “sobretudo os que procuram constituir família e ter crianças”. Foi o caso de Sonam Lama, casado há mais de quatro anos com uma cidadã portuguesa e com um filho já nascido em Portugal.
Mas ao contrário de Sonam Lama, que obteve a nacionalidade nepalesa, a maioria dos tibetanos é obrigada a arranjar um passaporte falso para conseguir viajar para o Ocidente, explica Françoise Robin. Um processo que custa entre 10 mil e 15 mil euros, com a viagem incluída, acrescenta a académica.
Ou seja, os exilados chegam ao destino já desesperados por um emprego que lhes permita pagar a enorme dívida que contraíram. “70 por cento dos tibetanos em França trabalham longas horas em restaurantes chineses”, estima Robin.
No final de contas, o maior desejo dos exilados, diz a francesa, é iniciar o processo de pedido de asilo político no Ocidente e, mais tarde, obter uma nacionalidade estrangeira que lhes permita visitar o Tibete. Um sonho que raramente se concretiza, de acordo com a International Campaign for Tibet (ICT).
Kafka no consulado
Segundo um inquérito divulgado em Junho pela organização não-governamental e que envolveu 527 exilados a viver em 12 países europeus ou na Índia, a esmagadora maioria das 224 pessoas que pediu à China um visto para visitar a terra natal não teve sucesso.
De acordo com uma série de entrevistas feitas por Françoise Robin, e disponibilizadas ao EXTRAMUROS, as dificuldades surgem logo ao entrar num consulado ou embaixada chinesa. Basta ter um nome tibetano ou colocar como local de nascimento o Tibete ou ‘Amdo’, uma das três regiões tradicionais tibetanas.
Algo corroborado por um exilado na Bélgica que respondeu ao inquérito da ICT: “Perguntaram-me o meu local de nascimento e eu respondi ‘Tibete’. Imediatamente eles [funcionários da embaixada chinesa] mudaram a língua do formulário do visto de inglês para chinês”.
Aliás, admite Sonam Lam, os tibetanos que conseguiram obter outras nacionalidades já aprenderam a mentir nos formulários, alegando que nasceram fora do Tibete, para evitar problemas.
Isto porque, para quem cai neste primeiro obstáculo, um visto de turista deixa de ser uma hipótese e só resta pedir um visto de ‘compatriota chinês’, mesmo tendo um passaporte estrangeiro. “Se és tibetano, para as autoridades chinesas és chinês e serás sempre um cidadão chinês”, explica Françoise Robin.
O que se segue é quase um interrogatório policial, acrescenta a académica. “Tive de dar toda a informação sobre os membros da minha família, revelar quem queria visitar e arranjar convites deles todos”, diz um exilado que respondeu ao inquérito da ICT.
“Eles perguntaram-me sobre Sua Santidade, o Dalai Lama, e sobre a visão política dele”, escreveu outro. “Perguntaram-me se tinha participado nas manifestações do Dia da Revolta Tibetana [10 de Março] e muitas questões sobre o Governo do Tibete no exílio”, respondeu outro exilado.
O mesmo tibetano esperou três anos – “Nem tinha a possibilidade de lhes ligar a perguntar sobre o processo do meu visto” – até ver o pedido rejeitado sem qualquer explicação. Um outro exilado foi obrigado pelo consulado ou embaixada a cancelar o pedido para poder reaver o passaporte, refere o inquérito da ICT.
“Ao negar vistos a cidadãos estrangeiros de descendência tibetana com base apenas na sua etnia, a China está a praticar discriminação racial”, disse ao EXTRAMUROS Matteo Mecacci, presidente da ICT.
Um factor que pesa na concessão ou não de vistos, diz Françoise Robin, é a origem dos exilados. “Para quem é [das regiões vizinhas] de Qinghai, Gansu ou Sichuan, ainda pode ter sorte. Mas aqueles que nasceram mesmo na Região Autónoma do Tibete, é para esquecer”, explica a académica.
Insultos e sedução
Os tibetanos com a sorte de obter um visto já vão preparados, acrescenta Françoise Robin. “Geralmente apagam todas as mensagens da [rede social chinesa] WeChat, usam um telemóvel diferente e enquanto estão por lá não contactam ninguém” no Ocidente, explica a professora universitária.
Afinal, a recepção é tudo menos hospitaleira. Ao chegar a Qinghai, um exilado entrevistado pela francesa, teve de se dirigir de imediato ao Centro de Recepção de Compatriotas Tibetanos, onde foi interrogado por um funcionário de etnia tibetana.
“Depois surgiram os insultos. Ele desprezava os tibetanos a viver no estrangeiro. (…) Disse-me que os tibetanos tinham vidas miseráveis no Ocidente, em condições de alojamento vergonhosas. (…) A conclusão dele foi que era muito melhor viver no Tibete”, revelou o exilado.
“Estes oficiais visitaram a Europa e sabem que estas pessoas são pobres refugiados que vivem em casas sobrelotadas e fazem trabalhos de cão”, explica Françoise Robin. Além disso, têm ficheiros detalhados sobre cada tibetano no estrangeiro, acrescenta a académica.
Já na terra natal, o exilado teve de ir a três gabinetes diferentes. No primeiro, “fui questionado sobre tibetanos em Paris que vinham do mesmo distrito. Eles sabiam muito sobre os tibetanos em Paris”, disse o entrevistado.
É o início de uma tentativa de os seduzir a regressar, diz Françoise Robin. “Eles oferecem-lhes um emprego confortável, com direito a carro e uma mansão”, explica a francesa. Também o irmão de Sonam Lama, que vive na Suíça, foi convidado a voltar ao Tibete.
“Mostrar quem manda”
No segundo gabinete, o tibetano teve de entregar o passaporte francês, com a promessa de o reaver poucos dias antes de partir da China. Este procedimento “viola todos os acordos internacionais, e os tibetanos são ordenados a não falar sobre isso. Uma forma de mostrar quem manda e que eles ainda estão muito vulneráveis”, diz Françoise Robin.
No terceiro gabinete, “a conversa tomou um novo rumo: perguntaram-me sobre certos tibetanos (…). Se denunciasse alguns deles, poderia tornar-me rico. (…) Depois disseram-me que eles poderiam ajudar-me se a minha família precisasse de dinheiro, se tivessem problemas de saúde”, diz o exilado.
O Partido Comunista Chinês “quer pessoas a espiar junto dos tibetanos para ter uma visão e informação vinda de dentro” das comunidades de exilados, explica Françoise Robin.
Como a oferta de dinheiro não resultou, a conversa terminou com uma ameaça, diz o entrevistado: “A autorização para poderes voltar [a visitar o Tibete] está nas nossas mãos”.
Agentes chineses a operar na Europa “frequentemente intimidam as pessoas mais vulneráveis para as pressionar a revelar informações sobre outros”, acusa Matteo Mecacci. O presidente da ICT recorda que, em 2018, um tibetano foi acusado de espionagem na Suécia.
Isto depois de tibetanos terem recebido “avisos” do regime comunista sobre familiares exilados na Suécia. “Isto é trágico porque mostra que, mesmo quando conseguem escapar para a liberdade, os tibetanos não se livram das malhas da repressão chinesa”, lamenta o activista.
O objectivo final, diz Matteo Mecacci, é “silenciar os exilados tibetanos que podem contar ao mundo a verdade sobre a opressão chinesa no Tibete”.
“Uma vez viajei com um tibetano para o Canadá”, recorda Françoise Robin. “A caminho do aeroporto de Paris, ele recebeu uma chamada da esquadra da polícia da terra natal dele, na província de Qinghai, a dizer: ‘Sabemos que vai viajar. É melhor ter cuidado’”.