Pandemia agrava sentimento anti-China. Racismo com impacto na vida dos estudantes chineses no estrangeiro.
Do Brasil à Zâmbia, passando pelos Estados Unidos, a pandemia da Covid-19 agravou um sentimento anti-China, já visível um pouco por todo o mundo, dizem vários académicos ao EXTRAMUROS. E o racismo já está a ter impacto na vida dos estudantes chineses no estrangeiro.
“Quem são os aliados no Brasil do plano infalível do Cebolinha para dominar o mundo?” escreveu no início de Abril, no Twitter, Abraham Weintraub. O então Ministro brasileiro da Educação usou a personagem da banda desenhada “Turma da Mónica” para insinuar que a comunidade chinesa no Brasil estava a ajudar a China a usar a pandemia da Covid-19 para se fortalecer em termos geopolíticos.
“O meu primeiro sentimento foi de perplexidade, seguida por uma enorme revolta”, diz ao EXTRAMUROS Vinícius Gomes Wu. O conteúdo da publicação é “claramente xenófobo e racista, procura estigmatizar uma determinada comunidade e estimular uma rejeição por parte de parcelas da sociedade brasileira”, lamenta o historiador.
Na publicação que colocou no Twitter, Abraham Weintraub trocou os “Rs” pelo “Ls”, numa referência a uma dificuldade comum aos chineses em pronunciar certas palavras em português.
A expressão de um crónico preconceito “velado, pouco explícito” que recordou Vinícius Wu o avô, Wu Akit, que em 1925 enfrentou uma travessia marítima de três meses para emigrar de Taishan, no sul da China, para o Rio de Janeiro. “Ele conseguiu dominar bem a língua portuguesa, se bem que com as dificuldades que todo o chinês enfrenta”, sublinha.
Vinícius Wu apresentou uma queixa pelo crime de discriminação racial, que chegou ao Supremo Tribunal Federal brasileiro. O inquérito acabou por cair para a primeira instância quando Abraham Weintraub abandonou o cargo do ministro, a 19 de Junho, e partiu repentinamente para os Estados Unidos.
Só mais tarde se soube que tinha sido nomeado pelo Brasil como director executivo do Banco Mundial. Mas a polémica continuou a perseguir Abraham Weintraub, com a associação dos funcionários do Banco Mundial a exigir ao Comité de Ética a suspensão da nomeação e a abertura de uma investigação às alegadas declarações racistas.
Durante o inquérito, Abraham Weintraub recusou-se a responder às perguntas da Polícia Federal, limitando-se a entregar um documento em que negou ter tratado os chineses de forma discriminatória e se disse ofendido por estar a ser investigado por racismo.
Vinícius Wu não acredita e defende que o racismo do ex-ministro “foi confirmado com as manifestações seguintes de apoiantes do actual governo, que se viram encorajados a reproduzir conteúdos semelhantes”. O Brasil sempre recebeu bem os imigrantes chineses, diz o historiador, e por isso mesmo “esse tipo de manifestação representa efectivamente um grande retrocesso, é algo inédito”.
Onda de sinofobia
Pode ser inédita no Brasil, mas não é única no mundo a “onda vergonhosa de sinofobia” – expressão usada pela Amnistia Internacional em Itália para se referir à discriminação, insultos e actos de violência contra a comunidade chinesa, no pico da pandemia.
A Covid-19 afectou certamente a imagem internacional da China. Segundo um inquérito realizado pelo Conselho Europeu de Relações Externas, entre o final de Abril e o início de Maio, em oito de nove países, a percentagem de habitantes com uma opinião negativa da China mais que duplicou.
Também em África houve, “logo ao início, em Janeiro e Fevereiro, um discurso anti-China muito ligado à Covid-19”, lembra ao EXTRAMUROS Barry Sautman, sociólogo da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong.
O que realmente prejudicou a reputação chinesa, diz o canadiano, foram os casos de discriminação da comunidade africana radicada em Guangzhou. As autoridades da cidade chinesa não fizeram nada para impedir os senhorios de expulsar muitos africanos, lamenta Barry Sautman.
As notícias chegaram a África, obrigaram os líderes africanos a reagir e ficarão durante muito tempo na memória dos habitantes, diz o académico. “No mínimo fará com que os africanos suspeitem que os chineses sejam racistas”, acrescenta.
Além disso, embora a maioria dos chineses vá para África abrir o próprio negócio e assim criar empregos, “há receios de que eles venham roubar o trabalho aos africanos”, refere o canadiano. Na Zâmbia diz-se à boca cheia que “os chineses até empurram carrinhos de mão”, simplesmente por não terem vergonha de fazer trabalho manual quando é necessário, salienta Barry Sautman.
Mas o sentimento anti-China acabou por se dissipar, sublinha o sociólogo, graças à ajuda que Pequim deu ao continente africano para combater a Covid-19 e ao facto de poucos terem sido os casos de infecção vindos da China. “Os sacrifícios que a China fez para enfrentar a pandemia são reconhecidos em África”.
A história é diferente no resto do mundo, onde a desconfiança face à China já existia antes da Covid-19. Segundo um inquérito realizado pelo norte-americano Pew Research Center, já na primavera do ano passado, a opinião sobre a China era geralmente negativa na Europa, na América da Norte e na região da Ásia-Pacífico. Aliás, muitos dos incidentes racistas têm pouco ou nada a ver com a pandemia. A 17 de Junho, em Timor-Leste, a deputada de origem chinesa Maria Fernanda Lay acusou uma outra deputada de ter feito “comentários racistas”, nomeadamente de a ter chamado “china pirata”. Isto apesar de haver em Timor-Leste uma comunidade sino-timorense que se começou a formar desde o século XIX e que, segundo o ‘think-tank’ australiano Lowy Institute, vai de 500 a três mil chineses a residir na ilha.
Mais antiga ainda é a presença chinesa na Malásia, onde o antigo primeiro-ministro Mahathir Mohamad foi acusado do crime de racismo por ter dito, no final de Junho, que “os chineses são ricos e controlam quase todas as cidades malaias”.
“Perigo Amarelo”
Nos Estados Unidos, o discurso vai ainda mais longe, com alguns comentadores de extrema-direita a alegar que o movimento anti-racismo “Black Lives Matter” é uma conspiração da China para desestabilizar o país. “Os académicos que têm acompanhado o sentimento antichinês notaram um aumento ainda antes da Covid-19, mas parece que a pandemia agravou a situação,” analisa Jennifer Pan, professora de Comunicação na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.
Pan é co-autora de um estudo, divulgado este mês, sobre o impacto da discriminação nos estudantes vindos da China. “A razão pela qual escolhemos o racismo para foco desta investigação é mais pessoal. Ainda antes da Covid-19, nós – os autores deste estudo – e os nossos estudantes estávamos já a sentir um aumento no número de ataques antichineses”, explica a académica.
Jennifer Pan lamenta que, tal como em outros países, a maioria da população norte-americana “não consiga distinguir sino-americanos, cidadãos chineses a viver nos Estados Unidos e mesmo outras pessoas de descendência asiática são todos postos no mesmo saco”.
A professora universitária culpa o Governo de Washington: “Não há actualmente qualquer separação entre a política para a China e uma caracterização étnica e racial” dos chineses.
Após os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, o então presidente George W. Bush pediu moderação no tratamento dos muçulmanos norte-americanos, lembra Jennifer Pan. “Não é isso certamente o que o Presidente Donald Trump está a fazer”, acrescenta a investigadora.
O resultado é o regresso de uma visão da China como uma “enorme ameaça existencial” para os Estados Unidos, na forma de “uma nova versão do Perigo Amarelo ou da Ameaça Comunista”, diz Jennifer Pan.
Uma opinião partilhada por Vinícius Wu: “Em vários países, a extrema-direita declarou uma verdadeira guerra cultural contra a China”. O historiador acredita que, no caso do Brasil, a procura de “estabelecer demarcações ideológicas com a China” nasce de uma postura “absolutamente inadequada de um alinhamento automático e subserviente com os Estados Unidos”.
Ironicamente, isto levou mesmo a extrema-direita brasileira a lançar no mês passado a campanha “#VivaTaiwan” no Twitter, após uma polémica que envolveu Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente brasileiro, e o Embaixador da China no Brasil.
Já em Abril, Yang Wanming tinha feito “declarações muito contundentes” de repúdio à publicação de Abraham Weintraub, que classificou de racista para com os chineses, recorda Vinícius Wu.
Portas fechadas
Ainda assim, o historiador ficou surpreendido por ser o único membro de uma comunidade estimada em 290 mil pessoas a apresentar uma queixa. “Acabei por receber muitas mensagens de pessoal da comunidade chinesa no Brasil mas a reacção foi muito limitada”, comenta.
A legislação brasileira antidiscriminação é vista como “muito ligada ao racismo que os negros sofrem”, diz Vinícius Wu, cuja mãe é afrodescendente. Por outro lado, há uma desconfiança enraizada da população em relação à justiça e uma percepção de impunidade dos poderosos, acrescenta o académico.
Um outro factor que pode explicar esta reacção é apontado pelo sociólogo Barry Sautman, que estuda a presença chinesa no continente africano. Durante a pandemia, “as empresas chinesas em África praticamente todas fecharam-se em copas para garantir que as pessoas que trabalhavam para eles não espalhassem a doença”.
As comunidades chinesas “queriam ser tão discretas quanto possível no seu ambiente adoptado”, escreveu em 2009 Karen Harris, professora da Universidade de Pretória, sobre os chineses na África do Sul. Uma discrição que não significa que os chineses sejam mais imunes que outros grupos a incidentes racistas, sugere o estudo co-autorado por Jennifer Pan.
A investigação concluiu que actos de discriminação levam os estudantes chineses em universidades dos Estados Unidos a acreditar menos na necessidade de reforma política na China. O impacto é mais acentuado em estudantes que, comparados com os seus colegas nas principais universidades chinesas, “são mais liberais, menos nacionalistas e menos favoráveis” ao regime comunista, sublinha Jennifer Pan.
Críticas não-raciais da China, do governo de Pequim e das instituições políticas chinesas não têm este efeito, o que prova que os estudantes chineses “são mais perspicazes e tolerantes do que muitas pessoas pensam”, acrescenta a professora universitária.
Além do aumento dos incidentes racistas, os estudantes, investigadores e cientistas chineses nos Estados Unidos enfrentam agora mais restrições, fruto da relação contenciosa entre a administração do Presidente Trump e a China, recorda o estudo. “Muitos dos dirigentes políticos norte-americanos acreditam firmemente que a China beneficiou de forma desproporcionada do intercâmbio educacional porque cresceu económica e tecnologicamente sem se liberalizar politicamente,” diz Jennifer Pan.
Os estudos já realizados “não apoiam esta visão”, acrescenta sucintamente a académica. No campo da inteligência artificial, por exemplo, os Estados Unidos têm beneficiado muito mais dos investigadores chineses, vinca.
Uma coisa é certa, sublinha Jennifer Pan, se os Estados Unidos fecharem as portas a estudantes vindos da China, “então eles definitivamente não irão aprender nada sobre instituições democráticas, o que tornará muito mais difícil imaginarem alternativas políticas” ao regime comunista chinês.