O apetite da China rumo ao ocidente
Henfil era Henrique de Souza Filho (1944-1988), cartunista, quadrinista, jornalista e escritor brasileiro que visitou a China em 1978, ainda antes de ter Coca-Cola por lá. Esta viagem deu um livro, um diário ilustrado.
Hoje podemos ver que as ilustrações de Henfil têm uma interpretação a modos que futurística, ao preverem, por exemplo, a roda elétrica que agora não raro é usada, em especial nas imediações da Paulista, em São Paulo, ou em Botafogo, no Rio de Janeiro. Isto referindo-me apenas ao meu entorno. Estas rodas elétricas, usadas como meio de locomoção, já não são novidade na China, nem foram nos desenhos publicados neste livro de Henfil, justamente chamado de “Henfil na China”.
O cartunista esboça drones, mas também camelos, no que soa a símbolo percursor do que hoje já se configura como a nova Rota da Seda (também de chamada de “uma faixa, uma rota”).
Uma espécie de prelúdio estaria por vir. Os chineses já no início de 2000 anunciavam medidas para 2050! Ou seja, o que foi anunciado em 1978, os olhos de Henfil conseguiram ver. Tão a ver? Os carros, as montadoras chinesas, as novas rotas de avião, e este novo aeroporto espetacular, inaugurado há uns meses em Pequim. Olhar a China de hoje é ir ao encontro das inovações, configurações e alternativas de organizações sócioeconômicas do futuro.
Sinofuturismo é isso, a junção de tudo o que é vidente, sabedoria dos orientes (o médio, a África, o leste todo).
Agora com gás pedem os chineses há tempos. Nesta altura, as colas e pepsis já lá estão. E a população sofre da doença da falta de doçura no corpo e excesso de açúcar no sangue. A China hoje é o país com um dos maiores índices de diabéticos, liderando na primeira posição.
Na alquimia dos sabores, o que não falta aos chineses são minúcias e ancestralidade, ou seja a combinação que fizeram do encontro entre a arte da gastronomia – cuja característica envolvia saberes da medicina tradicional chinesa – e a abertura de negócios fast-food. Desde a abertura econômica, promovida por Deng Xiaoping, o país precisou de tempo até popularizar as influências ocidentais, permitindo que estas chegassem ao cotidiano de sua mesa, e passassem a ser assimiladas na sociedade, em termos de estilo, comportamento, hábitos e, por conseguinte, consumo. O tempo das minúcias e da ancestralidade caminha mais lento que a velocidade da abertura, das franquias de fast-food e do apressar das horas da vida moderna, cada dia mais aceleradas.
Entre aberturas, a capital pequinesa recebeu com curiosidade, em 1987, a primeira rede de fast-food, o KFC. Cinco anos mais tarde, mediante o sucesso entre os novos consumidores chineses, Beijing receberia também o McDonald’s e a Pizza Hut.
Não demoraria muito para que o governo chinês incluísse e publicasse, durante o Oitavo Plano Quinquenal (1991-1995), diretrizes específicas para esta indústria, estabelecesse metas de crescimento e definisse uma classificação oficial para fast-food: “alimentos deliciosos e nutritivos de rápido consumo”.
Desde então, os chineses consomem mais avidamente o ocidente. A curiosidade por novidades gerou novas indústrias, novos desejos, muitos nichos e bastante lucro, fazendo emergir junto à recém-criada classe média chinesa – mas não apenas – um apetite ávido.
Mas não bastava o acesso ao consumo. Era preciso aprender a degustar, a mostrar que se sabia manejar e, ainda, que tinham traquejo com as ocidentalidades expressas.
Em meados dos anos 2000, entraram em voga em todo o país cursos dedicados a práticas de adequações sociais e de etiqueta, de acordo com os padrões ocidentais. Surgiram opções variadas como a arte de saborear o café, ensinamentos sobre como consumir vinhos, etiqueta à mesa, incluindo o uso de garfo e faca, entre outras iniciativas que já davam pistas do impacto que viria a ser a inclusão desta nova e numerosa camada da população chinesa na configuração do país, bem como no cenário internacional.
É preciso considerar o apetite chinês. Por natureza, é um povo que não era dado ao consumo de leite de origem animal. Consumia, aliás, leite de soja. Isto até o momento em que o governo chinês deu início a uma campanha nacional incentivando o consumo diário de leite. E o mesmo em relação ao café. Conhecida outrora por sua cultura do chá, a China tem-se tornado cafeinada. No caso do café, diferente do leite, o apetite se dava em ostentar modernidade, um certo cosmopolitismo da parte dos jovens de classe média, imbuído no ato de circular em locais públicos, segurando um copo do Starbucks.
A disposição dos chineses em absorver é uma característica marcante. O prazer em comer e a satisfação da fartura também, assim como a discussão do tema. Os chineses estão sempre com comida na boca, deliciam-se a falar sobre o tema, unânime entre a população. Eles conhecem a fundo a fartura e também a ausência. E quando falta, faltam-lhes também palavras. Veja-se o período da Grande Fome de que pouco se fala.
Os desastres naturais dessa espécie ficaram no passado. Hoje lidam com os excessos. Overdoses. O alto nível de glicose no sangue virou epidemia, levou o país, em quase trinta anos, a figurar num ranking antes frequentando com discrição: o dos países com maior número de diabéticos, do tipo 2, superando a posição de liderança que, até então, era detida pelos Estados Unidos.
Os desastres naturais realizados para suprir a oferta e a demanda dos excessos no país vão ao custo de pulmões, estômagos, fígados e esôfagos, porque são estes os casos de câncer mais comuns na China e que também dispararam desde as aberturas (econômica e cultural).
Entretanto, têm sabido manter o fôlego, vêm percorrendo caminhadas de mil léguas dando primeiros passos pelo caminho (Tao) desde LaoZi. Milenares, pragmáticos, dedicam-se ao registro das aventuras, esmiúçam em alegorias, recorrem à sátira humorística, invocam mitologia, filosofia e evocam a coragem, porque sabem que há sofrimento e provações. A Jornada para o Oeste não é propriamente uma novidade. Pelo contrário, é tradição, é a mais conhecida das obras clássicas da literatura chinesa desde o período da dinastia Tang.
A saga visa a busca do conhecimento, ruma-se para oeste (Ásia central e Índia) atrás de textos sagrados (sutras), viaja-se almejando a iluminação, enaltecendo a virtude da cooperação.
Henfil, em ilustração de diário em sua viagem à China e de sua forma, fez-nos degustar este olhar, tás a ver?