A invenção da China
A China em chinês se chama zhongguo: 中 (centro) e 国 (território, país…). A China para os chineses da China sempre foi e continua sendo o Império do Meio, mesmo em períodos de invasões, crises, guerras, maus momentos. A China aceitou a designação China (ao invés de 中国 zhong guo) por uma postura de humildade em relação à apropriação e arrogância mercantilista ocidental. Os laowai 老外 (estrangeiros) tinham interesse na sua porcelana – e sigam esta linha de pensamento, “porcelana” diz-se 瓷器 ciqi…qi, qi, chi, china. Foi mesmo este o processo que levou à escolha do nome concedido a este império milenar? E o que dizer do imperialismo chinês?
Estamos a falar do inventar de um nome a partir de um encontro do seu com o outro, passando a considerar esse o início. É que de facto antes disso havia o um e o outro, mas não esse encontro. O que surge a partir deste ponto é o determinante, denominado e dominante e vice-versa.
O Ocidente considerou natural dar um novo nome ao Império do Meio. Séculos depois, com a entrada no novo milênio, a chegada de nomes como Dolars, Candy, Rainbow e de todos os outros nomes fantasia que a juventude chinesa elegeu para se apresentar, se corresponder via trocas de emails ou estampar na dupla face do cartão de visitas, foi vista como chacota por seus interlocutores ocidentais. Assim, como até hoje seguem circulando os casos de “chinglish”, de tradução duvidosa, muitas vezes não se entendendo mesmo a versão traduzida.
Ambos os lados são tentativas de diálogo. Quando se avança da oralidade para a esfera do registrado por escrito, começam os atritos, as agressões, as imposições e também a distância de tudo aquilo que havia sido dito. Pensemos nas adequações legais enfrentadas pela China na altura da sua entrada na Organização Mundial do Comércio, ao invés, por exemplo, do 飞钱 (feiqian – literalmente “dinheiro voador”), prática cultural chinesa de não usar instituições bancárias para transferências ou pagamentos internacionais e mesmo entre províncias, cidades ou outras localidades. E nem sempre tendo esta consciência que a palavra fica escrita, rege e vigora muito além do agora. Com a velocidade das transformações, a outrora significância do mantido registrado perde importância, apesar de em algum lugar ser mantida impressa, mesmo que seja na memória. Me refiro a episódios, como o reverberar que se deu e se dá no processo do novo olhar e também da origem que permanece. É o caso, por exemplo, da cor amarela, cujo sentido subliminar ancestral denota o proibitivo, graças à tradição que permitia apenas a monges e ao imperador fazerem uso desta cor. No último século, fazer menção e classificar algo como amarelo refere-se a pornografia, agora proibida, mas amplamente vivida ao longo de várias dinastias.
Não há contradição, há o modo como a história acontece. A Pequim pré-olímpica durante um determinado período fez uso da demolição (拆, lê-se chai), para construir, ampliar, gentrificar, modernizar. O carácter 拆 era escrito no muro das casas e construções que sabíamos que dali a pouco não existiriam mais. E guardávamos as fotos, lembranças, vivências. Isto para dizer que o cenário se altera na China, em especial, e a uma velocidade tamanha. A invenção da China passa pelo outro, o Ocidente, e sobretudo passa por ela mesma. Por seus processos de abertura, planejamento, investimento, inovação.
A invenção da China não é uma criação ou descobrimento, apesar da insistência de tempos em tempos do mundo considerar o fato de revisitá-la como se fora um conceito. A invenção da China é o desafio do Ocidente em tratar a miopia e debruçar com afinco o olhar e, principalmente, o escutar, o saborear, o visitar. Ou seja, exercitar sensorialmente para tentar melhor se aproximar deste país milenar.
Numa era pós-revolução digital das realidades virtuais, inteligência artificial, o fato da China caminhar nesta liderança tem seduzido e atraído muitos entusiastas, que se animam com as fintechs chinesas e as suas soluções, que visitam a sede das empresas e fábricas futuristas, retornando da jornada considerando-se especialistas.
A invenção da China passa por este lugar. O lugar do outro em nós e o nosso nesta troca. Sem a prática da antítese Oriente-Ocidente e superada esta compreensão, ter a noção da interseção continuará promovendo a China como invenção, porcelana.