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política e sociedade

Hong Kong e o marketing de uma revolução

July 10, 2019

Hong Kong e o marketing de uma revolução

Dezenas de milhares de manifestantes voltaram a sair à rua no domingo passado em Hong Kong, numa campanha que há mais de um mês exige a retirada formal de uma proposta de lei que iria abrir a porta à extradição, tanto de residentes como estrangeiros a viver ou a visitar a cidade, para a China continental. Uma jurisdição onde em mais de 99 por cento dos casos criminais os arguidos são considerados culpados, onde a justiça está sujeita ao controlo do Partido Comunista e onde a lei prevê crimes de cariz político e de expressão.
Mas em vez de se dirigir aos alvos do costume – ao parlamento de Hong Kong e à sede da polícia – o protesto de domingo teve um destino pouco habitual. Os manifestantes marcharam nas ruas de Tsim Sha Tsui, um dos mais populares destinos turísticos da cidade, entoaram slogans em mandarim – em vez da língua local, o cantonês – entregaram panfletos e partilharam mensagens nas redes sociais em chinês simplificado com os turistas vindos do continente, quando em Hong Kong se usa a escrita tradicional.
A tentativa de conquistar a simpatia dos chineses do outro lado da fronteira poderá ser um ponto de viragem para o movimento pró-democrata de Hong Kong, cujos elementos mais radicais se tinham vindo a distanciar de qualquer ligação ao interior da China, defendendo a autodeterminação ou mesmo a independência da região. A inesperada táctica demonstra a crescente sofisticação de uma geração que despertou para o activismo político e social de forma amarga, através do falhanço da chamada “Umbrella Revolution”, que em 2014 exigia a eleição directa e por sufrágio universal do Chefe do Executivo. Uma das lições que os activistas aprenderam foi a importância de conseguir o apoio da opinião pública, não apenas em Hong Kong mas também na China continental.

Exemplo de mensagem enviada pelos manifestantes de Hong Kong para o Interior da China a explicar os objectivos dos protestos na região e como proteger os interesses dos locais

Gota a gota

Num país onde o regime político não pode contar com a legitimidade conquistada através de eleições democráticas, reprimir os críticos não chega para segurar o Partido Comunista, que se vê ainda obrigado a estar atento e responder aos humores da opinião pública, por mais irracionais, nacionalistas ou até economicamente ruinosos que sejam.
Qualquer referência aos recentes protestos nas redes sociais chinesas foi obviamente bloqueada pelo aparelho de censura do Partido Comunista. Só na semana passada, quando um grupo de manifestantes ocupou o parlamento de Hong Kong, é que a imprensa estatal chinesa interrompeu o silêncio para condenar a acção.
Ainda assim, a censura não impediu que notícias sobre os protestos fossem pingando para o continente, despertando curiosidade. Logo após o maior protesto de sempre em Hong Kong, com mais de um milhão de pessoas – segundo os organizadores –, a mais popular rede social chinesa, o WeChat, registou 32,4 milhões de buscas pelo termo “Hong Kong”, o triplo da semana anterior.
A nova táctica dos manifestantes reflecte a vontade de ultrapassar este crescente desconhecimento por parte das novas gerações da China continental da realidade de Hong Kong.
O regime chinês tem sido bem-sucedido em usar duas vozes completamente distintas, uma em chinês para consumo interno e outra em inglês para o exterior. Por um lado, Pequim não perde qualquer oportunidade de ficar com o crédito pelos sucessos de Hong Kong desde 1997, numa tentativa de seduzir Taiwan a aceitar uma reunião sob o mesmo princípio, “um país, dois sistemas”. Por outro lado, na China continental pouco se fala das diferenças históricas e culturais que separam Hong Kong, e também Macau, das restantes regiões chinesas.
O estatuto especial de que beneficiam as duas cidades – governado por tratados internacionais assinados entre países soberanos – é tratado pela imprensa estatal de forma tão corriqueira como o sistema de residência “hukou” ou os benefícios fiscais das zonas económicas especiais. Em parte isto reflecte a relutância do Partido Comunista em sequer mencionar o facto dos chineses de Hong Kong e Macau usufruírem de liberdades e direitos que muitos dos seus compatriotas do outro lado da fronteira nem sequer compreendem.

Dogma sagrado

Por outro lado, é um dogma sagrado do regime falar da China como uma entidade homogénea, unida pela cultura dos han, a etnia dominante, e por uma língua artificial. As culturas das dezenas de etnias minoritárias que vivem no território que hoje conhecemos por China – desde coreanos a uigures muçulmanos, passando por cazaques loiros e de olhos azuis – são encaradas como exóticas peças de museu. As centenas de dialectos e línguas que as crianças chinesas falam em casa – antes de serem obrigadas a aprender mandarim assim que chegam à escola – são completamente ignoradas, incluindo por exemplo o dialecto de Qingtian, uma pequena região do leste da China de onde vem um terço dos chineses que vivem em Portugal.
Uma consequência deste discurso tem sido criar entre os chineses do continente um ressentimento em relação às ambições dos Hong Kongers em serem diferentes. Um sentimento amplificado pelo crescente desconforto dos residentes da cidade com o impacto dos investidores e turistas da China continental na economia local, sobretudo no aumento da inflação. Já em 2012 tinha circulado um anúncio acusando os chineses do continente de serem gafanhotos a devastar a economia de Hong Kong.
Se as críticas à China vindas do exterior já são pouco toleradas, a reacção é ainda mais visceral quando envolvem aqueles que são vistos como chineses traidores. O Partido Comunista tem fomentado ainda mais esta imagem ao repetidamente culpar “influências estrangeiras” pelos contratempos que a política de Pequim tem enfrentado na cidade.
Em Abril passado uma estudante de Hong Kong escreveu um artigo para o jornal do Emerson College, uma universidade norte-americana, intitulado “Eu sou de Hong Kong, não da China”. O artigo atraiu centenas de comentários, muito dos quais de chineses do continente a acusar Frances Hui de “envergonhar os antepassados”. Mas o comentário mais chocante veio de um outro estudante no Emerson College: “Todo aquele que se oponha à minha grande China, não interessa quão distante esteja, tem de ser executado”.

Imagem de destaque: Lewis Tse Pui Lung / Shutterstock.com
Manifestação de 7 de Julho, Kowloon

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