O exame mais temido do mundo
Todos os anos, durante dois dias no início de Junho, a China continental pára. Os estaleiros de construção civil suspendem os seus trabalhos, a polícia interrompe o trânsito e garante o silêncio nas ruas. As ambulâncias estão de plantão para o caso de haver alguém cujos nervos não aguentem.
Todas as atenções se viram para os liceus do país, onde milhões de finalistas fazem o ‘gaokao’, o exame único de acesso ao ensino superior. Quatro testes, de três horas cada um, que culminam numa nota única, entre 0 e 750 pontos, que determina quem entra nas universidades públicas. Durante uma palestra na Universidade de Macau no mês passado, o presidente da Sociedade Chinesa de Educação disse não ter ilusões sobre as falhas deste sistema. “Não deveria ser um único exame a decidir o futuro de um jovem,” sublinhou Zhong Binling.
Apenas um em cada 50.000 finalistas consegue entrar nas melhores universidades chinesas. Para os restantes, nem um curso superior é garantia de encontrar um bom trabalho, com o desemprego entre os licenciados a atingir os 16 por cento. O resultado é um sistema de ensino “feito apenas a pensar nos resultados dos exames”, em que os professores e os alunos começam “desde a escola primária” a concentrar-se na memorização quase mecânica de respostas, reconheceu Zhong. Um rolo compressor responsável por 93 por cento dos casos de suicídios entre os estudantes chineses. Ainda assim, o antigo responsável máximo do governo chinês para o ensino superior acredita que a situação terá de melhorar. Isto porque se em 2014 quase 38 por cento dos jovens chegavam à universidade, a China quer atingir os 50 por cento até 2020. Para Zhong, que foi presidente da Universidade Normal de Pequim durante mais de uma década, esta abertura passa também pela decisão de permitir aos filhos de trabalhadores migrantes estudar, depois fazer o ‘gaokao’, nas cidades, em vez de serem obrigados a regressar à terra natal. Afinal, estudos demonstram que esta separação forçada é um dos principais factores que explica porque é que os estudantes do meio rural têm competências cognitivas e sociais muito abaixo das crianças urbanas.
As autoridades querem também aumentar as quotas nas universidades públicas para estudantes do meio rural, acrescentou Zhong. Mas mesmo estas pequenas mudanças, introduzidas de forma experimental nas províncias de Jiangsu e Hubei em Maio passado, causaram protestos nas ruas de seis cidades. Embora haja planos para estender a mais províncias um outro projecto-piloto, já testado em Xangai e Zhejiang, que elimina a obrigatoriedade de escolher entre o teste de ciências ou humanidades, a verdade é que ninguém levanta a possibilidade de mudar radicalmente o sistema.
No ano passado as principais universidades chinesas realizaram entrevistas com os finalistas mais promissores, com aqueles que se destacam a receber uns pontos extra na nota do ‘gaokao’. O governo também convida alguns alunos a inscrever-se, sem ter de fazer o exame, em cursos considerados prioritários, incluindo programas de língua e cultura portuguesa. Mudanças mais radicais do que estas dificilmente seriam aceites pela população, que sabe bem que, se o acesso ao ensino superior levasse em conta o desempenho dos alunos nas aulas, isso seria um convite à corrupção, que é já endémica nas escolas chinesas. É comum os pais darem envelopes vermelhos com dinheiro, o chamado ‘lai si’, aos professores para que os seus filhos possam sentar-se mais à frente ou receber um pouco mais de atenção. Uma questão importante quando falamos de turmas que por vezes chegam a ter 50 alunos. Já a possibilidade das universidades convidarem estudantes directamente – algo comum por exemplo nos Estados Unidos – abriria a porta ao nepotismo e troca de influências. Uma questão muito sensível num país actualmente governado pelos filhos da elite revolucionária comunista.
Parece então não haver uma alternativa real. Isto porque a classe média chinesa continua a ver o ‘gaokao’ como um raro símbolo de meritocracia num dos países do mundo com maiores desigualdades sociais. Uma nota única, independentemente da posição socioeconómica ou cunhas que os pais dos alunos tenham. Um sistema similar ao famoso exame imperial que durante 1.400 anos determinou quem conseguia entrar na administração pública chinesa, e que foi durante séculos alvo de admiração por parte dos intelectuais ocidentais. No entanto, mesmo esta visão de igualdade é uma falácia. As famílias mais ricas podem contratar exércitos de tutores para os seus filhos, ou então pura e simplesmente ignorar o ‘gaokao’ e enviá-los para universidades privadas no estrangeiro. Mas para os pais da classe média, a simples possibilidade, por mais remota que seja, de entrar numa das principais universidades chinesas e garantir um emprego bem pago (e mesmo um bom casamento) no futuro justifica todos os sacrifícios, incluindo a tortura do exame mais temido do mundo.
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