Eu estive lá: a chegada de Chun Hua Catherine Dong ao Brasil
Numa sala vazia com paredes brancas e um relógio pendurado, uma área quadrangular é demarcada com ovos. Chun Hua, artista visual, circula nessa área ao longo de três horas, carregando uma pilha de livros e soltando-os. Existe uma relação entre esta performance e o clima social atual. O colapso parece inevitável. Cada vez que os livros caem, ocorre uma alteração no espaço, Chun Hua reformula a organização da área com os ovos, libera a tensão e registra o momento desta ruptura arrancando uma página aleatória de um dos livros da pilha e colando-a na parede com a inscrição da hora a que esta ação decorreu.
Segurar livros é uma tarefa sem sentido, uma labuta sem fim. O tempo neste trabalho não existe. É marcado apenas pela incapacidade de Chun Hua de segurá-los. E segurar os livros é aguentar o peso insuportável da história e da teoria. O absurdo exterior dessa luta sísifa sugere a futilidade do trabalho mecanizado e repetitivo, e é provocador na medida em que pressupõe que o trabalho pode simplesmente ser feito através do compromisso com a repetição.
Aqui, a artista menciona a conclusão de Albert Camus sobre a chave da felicidade que para Sísifo residia em aceitar a futilidade de sua tarefa. Questiona também se a felicidade reside em algum lugar entre trabalho inútil e aceitação. O desempenho perdura independentemente do resultado final – à medida que o tempo passa, mais livros caem e o peso fica mais leve, o trabalho é menos intenso. Quando não há mais peso a perder, o gesto se torna numa mera pausa estática.
Com este momento, a artista visual quer demonstrar que o processo de transformação social pode ser lento, apesar de mudanças poderem acontecer a qualquer momento e em qualquer lugar. Por outro lado, a performer chinesa examina como o colapso das estruturas de poder muda a dinâmica social e como esse colapso inevitável influencia nossa existência diária e cria um novo começo.
“Quando a morte real chegar, provavelmente não terei mais medo”
Chun Hua Catherine Dong esteve durante o mês de Agosto no Brasil, e apresentou no Rio de Janeiro “Para Começar”, o espectáculo acima mencionado. Num evento organizado em São Paulo, em que fui curadora, a artista falou sobre os seus projectos.
A residir há 17 anos no Canadá – um país que diz não ter história – Chun Hua transita no seu trabalho pelas manifestações fotográficas, audiovisuais e performáticas. Faz uso do próprio corpo, este corpo de mulher asiática, como instrumento para suas criações de arte política que carregam propósitos de cunho social, questões étnicas, de gênero e imigrações. “Para Começar” é a performance que propõe investigar as transformações sociais através das repetições e do trabalho.
Sobre novos começos e também sobre términos, a artista refere outro repertório em território brasileiro. A série “Eu estive lá” é uma performance em andamento, que explora a relação entre a morte, a pertença e a diáspora. Toda vez que a artista viaja para uma cidade, confecciona um edredom novo de tecido chinês bordado. Coberta pelo edredom, Chun Hua se deita em locais históricos, marcos arquitetônicos e atrações turísticas como um sinal de negociação e/ou interação com outras culturas e espaços. A artista explica que este trabalho é inspirado numa tradição fúnebre da sua cidade natal na China: quando uma pessoa idosa morre, filhas e filhos costuram edredons com tecido de seda – são as chamadas capas de cadáver – para cobrir o corpo dos pais. Por cada filho, o corpo recebe a proteção de um edredom diferente, camada sobre camada.
Chun Hua optou por não ter filhos, e como vive sozinha no exterior, a questão de quem a enterraria quando morresse a incomodava. Decidiu resolver este desconforto através da performance. É ela que confecciona as próprias capas para cadáveres e se enterra publicamente e repetidamente nelas. “Quando a morte real chegar, provavelmente não terei mais medo”, ela me diz.
“Eu estive lá” ganhou vida em 2015 e desde então levou Chun Hua a Londres, Atenas, Istambul, Pequim, Hangzhou, Manchester, Paris, Los Angeles, Santiago do Chile, entre outros destinos mundiais.
Apreender o vazio
O universo de Chun Hua Catherine Dong é formado por caminhos do cotidiano, transformado em arte, virtude e coragem. É assumir-se artista num país distante, que sempre inquire em riste sua ascendência, o seu destino e caminho.
“O Tao que pode ser enunciado
Não é o Tao constante
O Nome que pode ser nomeado
Não é o Nome constante
Sem-Nome: princípio do Céu-Terra
O Nome: mãe de Dez Mil seres
Sempre sem-Desejo
para o germe apanhar
Sempre com-Desejo
para o termo alcançar
Uma só fonte duplo nome
Participam do mesmo elã original
Mistério e mistério outro
Portal de todas as maravilhas”
(O livro do Caminho e suas virtudes, Lao Tsé)
Cito aqui a doutrina Tao para olhar Chun Hua Catherine Dong e, dessa forma, fazer a curadoria da sua vinda a São Paulo. O Tao implica certamente a mudança contínua; mas será que no âmago desse caminhar permanente, haveria, ainda assim, algo constante, que não muda, que nunca se altera nem se corrompe? De acordo com a obra de Lao Tsé, dotada de uma convicção não desprovida de humor, o que não muda é o próprio Vazio.
Um Vazio vivificante de onde se origina o sopro, a partir do qual o que é Sem-Desejo aspira constantemente ao ter Nome, desde que há Desejo, não se está mais constante.
Até chegar ao Canadá, Chun Hua nunca se atreveu a pensar em pintar nem tampouco em ser artista. A realidade lhe impunha outro tipo de distanciamento, atrelado aos embates da manutenção por seu sustento. A distância que hoje enfrenta é a de habitar um lugar sem história e a de criar a sua própria trajetória na escolha convicta do não-lugar para retornar. Chun Hua não voltará à China.
O único constante, o verdadeiro constante segundo Lao Tsé é, novamente, o Vazio de onde o sopro emana constantemente. Segundo esse ponto de vista, o verdadeiro ser é, a cada instante, o próprio impulso em direção à vida. Compreende-se, a partir de então, a preocupação dos pensadores chineses em apreender o Vazio.
Há nos pensadores chineses, assim como em alguns artistas chineses, uma busca no contato direto com a vida cotidiana, ligar o visível ao invisível, o finito ao infinito, ou inversamente, introduzir o invisível no visível e o infinito no finito.
O Vazio transforma o sujeito em projeto, no sentido de que ele o projeta diante de si próprio, sempre infinito. O sujeito não é esse bem meticulosamente conservado, como algo dado e, para sempre fixado. A verdadeira realização não está no estreito limite de um corpo mensurável, tampouco se encontra numa vã fusão com um outro, que seria ainda uma finitude; ela se encontra no vaivém sem fim e sempre novo entre as unidades de vida, o verdadeiro mistério sempre outro.
Para se aproximar de Chun Hua Catherine Dong disponibilizo aqui seu website com todas suas produções: https://chunhuacatherinedong.com