A vitória da amnésia
Há uns anos o temido “gaokao”, o exame único de acesso ao ensino superior, não correu muito bem a um primo da minha esposa, que teve de se contentar com um curso de jornalismo numa universidade do exército. Para o tentar alegrar, disse-lhe que ser jornalista no exército chinês não poderia ser assim tão mau. “A não ser que haja um novo Tian’anmen”, acrescentei meio a brincar. Ele olhou para mim sem perceber a referência.
Lembrei-me deste episódio no mês passado, quando começou a circular nas redes sociais chinesas um vídeo da agência brasileira de publicidade F/Nazca Saatchi & Saatchi que contava, de forma dramatizada, a história de como o fotojornalista Jeff Widener gravou o “homem do tanque”, que se tornou o símbolo do massacre de Tian’anmen, a 4 de Junho de 1989. O vídeo foi criado para a Leica Camera AG e termina com o logótipo da fabricante alemã de câmaras fotográficas.
A empresa rapidamente se distanciou da produção mas o mal já estava feito. A expressão “Leica insulta a China” surgiu rapidamente no Weibo, uma das mais populares redes sociais chinesas, com centenas de cibernautas a deixar críticas no perfil da fabricante alemã. Um comentário avisava a Leica: “sai da China, estás acabada”. Ainda assim, a reacção negativa ficou muito aquém do que aconteceu com outras marcas ocidentais como a Apple e a Dolce & Gabbana, que enfrentaram boicotes aos seus produtos.
Isto explica-se em parte pela pronta reacção da máquina de censura do Partido Comunista Chinês. As autoridades rapidamente removeram das redes sociais chinesas a grande maioria das publicações, impedindo mesmo os cibernautas de deixar comentários no perfil da Leica. Qualquer utilizador do Weibo que tentasse publicar uma mensagem que incluísse a expressão Leica ou o nome chinês da marca recebia imediatamente um aviso automático que estaria a violar as regras.
O regime comunista tem estado em alerta máximo com o aproximar do 30º aniversário do massacre de Tiananmen. Como forma de prevenção, vários activistas e dissidentes políticos foram detidos já na semana passada e as mais populares plataformas de “livestreaming” vão estar encerradas ou irão bloquear os comentários até dia 6 de Junho, alegadamente por “motivos técnicos”.
História apagada
A análise do impacto de Tian’anmen na sociedade chinesa tem-se concentrado sobretudo na forma como o Partido Comunista Chinês reescreveu a história. O massacre de estudantes e trabalhadores desarmados – – segundo algumas fontes, deixou 10 mil vítimas mortais – é descrito como uma “necessária” intervenção do exército para pôr fim a um golpe político instigado por forças externas, nomeadamente os Estados Unidos. Uma obsessão com a influência estrangeira que levou na altura, por exemplo, a Embaixada da China a pedir à Universidade de Lisboa a identificação dos alunos chineses que frequentavam a instituição.
Além disso, foram os acontecimentos de 4 de Junho de 1989 que levaram o regime a enveredar pela aposta não apenas num controlo policial apertado mas também numa educação nacionalista e um sistema omnipresente de propaganda. O objectivo era cultivar na população a certeza de que o povo, o país e o Partido eram como que uma santíssima trindade comunista, com uma linha de pensamento e falando a uma só voz.
O sucesso do regime reflecte-se num nacionalismo que encara toda a qualquer crítica ao regime como um ataque à China, e ainda numa generalizada falta de espírito crítico. Por exemplo, a Universidade norte-americana de Harvard organizou recentemente um debate para assinalar o 30º aniversário do movimento de Tian’anmen. Durante o evento, um jovem estudante chinês disse não acreditar que tivesse havido milhares de mortos porque o então líder chinês, Jiang Zemin, disse numa entrevista nos anos 90 que não tinha havido massacre nenhum.
Mas pouco se fala do esforço do regime para simplesmente apagar Tian’anmen da história chinesa. A minha esposa ainda se recorda de ver notícias sobre a ocupação da praça e avisos das autoridades sobre o perigo que o movimento, descrito como contra-revolucionário, constituía para a China. Mas mesmo ela nunca viu a fotografia do “homem do tanque”. Após o Partido Comunista ter decidido que o assunto era tabu, há uma genuína ignorância entre as gerações mais jovens, que cresceram sem ouvir falar dos acontecimentos de 4 de Junho de 1989.
O líder da Beyondsoft, uma empresa privada chinesa que se dedica a vender serviços de censura, disse ao New York Times em Janeiro que a primeira semana de trabalho dos novos recrutas é dedicada a aprender o que é preciso censurar, incluindo a história secreta da China. “Eles não sabem coisas como o 4 de Junho” de 1989, disse Yang Xiao. “Não sabem mesmo”.
É lamentável 数典忘祖 (shǔdiǎn wàngzǔ), “saber muito mas ignorar a sua própria história”, lê-se no “Zuo Zhuan”, uma narrativa histórica chinesa escrita há cerca de 2.400 anos. Mas hoje na China, a amnésia é lei.
Fotografia de destaque: Nestor Lacle