A crise do espaço público
“Hoje em dia o Ano Novo Lunar não tem graça nenhuma, já nem podemos lançar fogo-de-artifício ou rebentar panchões por causa da poluição. Este ano passei os dias a comer e a ver os meu parentes a jogar mahjong”. Ao ouvir o lamento da amiga, a minha mulher respondeu: “Se queres passar um Ano Novo chinês a sério, visita Penang, na Malásia”.
A minha primeira reacção ao ouvir o conselho da minha esposa, que quase soava a blasfémia, foi de surpresa. Mas rapidamente fui forçado a concordar. Desde que chegou ao poder, o regime comunista eliminou tradições colectivas milenares, como as regatas dos barcos-dragão e os cânticos rituais taoistas, que sobreviveram apenas em Macau, Hong Kong, Taiwan e ainda nas comunidades chinesas no estrangeiro.
Por um lado, na linha de Karl Marx, a religião era vista como o ópio do povo, uma dependência que era preciso erradicar. Aliás, é comum ver ainda hoje à entrada dos bairros urbanos chineses posters a alertar contra os alegados malefícios das seitas e grupos religiosos. Esta desconfiança com que o Partido comunista encara as religiões organizadas explica não apenas a repressão das minorias étnicas muçulmanas e da seita Falun Gong mas também a longa disputa com o Vaticano pelo controlo da Igreja Católica na China e mesmo as campanhas sucessivas para convencer os chineses, sobretudo os que vivem no campo, a aceitar a cremação em vez do enterro convencional.
Mas não se trata apenas de religião. Eu vivi uma década em Macau, onde o dinamismo da sociedade civil, cultural e não só, tornava possível elencar uma lista interminável de actividades organizadas por associações locais, de caligrafia chinesa a dança hip pop. Na terra natal da minha mulher, o meu sogro queria manter-se activo, depois de entrar na reforma. Só conseguiu encontrar um curso de Tai Chi, precisamente num centro comunitário público.
Tradições ressuscitadas
Na ânsia de controlar o espaço público, o regime comunista criou um vácuo de significado e espiritualidade na China que o desenvolvimento de uma sociedade de consumo rápido não conseguiu preencher. Foi só com a chegada ao poder do anterior presidente chinês, Hu Jintao, que o Partido reconheceu este problema, nomeadamente promovendo o budismo e até reabilitando o confucionismo.
Aliás, a meta repetida pelo actual presidente Xi Jinping de “construir uma sociedade moderadamente próspera” é de facto um cliché. Um lugar-comum com uma história de quase 2.600 anos, vindo do pensamento de Confúcio. O mesmo filósofo que foi banido como um símbolo de tudo o que era decrépito na China voltou à ribalta, com o Partido Comunista a aproveitar conceitos como a meritocracia, o respeito pela tradição e a relação paternalista entre um governante benevolente e os seus obedientes súbditos para legitimar o seu poder.
Também ao nível local as autoridades têm procurado ressuscitar velhas tradições, numa tentativa de encontrar uma identidade para cidades de arranha-céus que surgiram do nada em poucas décadas. A metrópole de Zhonsghan, na província de Guangdong, por exemplo, está a tentar transplantar o festival do Dragão Embriagado, uma das mais coloridas actividades de Macau.
A diferença abissal entre o interior da China e o dinamismo da sociedade civil em sítios como Hong Kong não nasce apenas da sanha do regime comunista contra tudo o que cheirava a velho, levada ao extremo durante a Revolução Cultural, ao procurar romper com o feudalismo vigente e construir uma sociedade nova. É também um reflexo de como o controlo apertado do Partido comprimiu o espaço público.
Mesmo no caso de organizações cujo cariz é pouco ou nada sensível em termos políticos, o regime não consegue pôr de lado a mania do controlo. O médico luso-chinês Pedro Choy, por exemplo, chegou a ser vice-presidente da Federação Mundial de Medicina Tradicional Chinesa. A presidência, como acontece em muitas outras associações, só pode ser ocupada por um membro do Partido Comunista.
Controlo e radicalização
Este desejo de manter o controlo a todo o custo é um entre os muitos factores que explicam o fracasso do regime chinês em “domar” Hong Kong. O Partido tentou repetir na região uma série de métodos já com provas dadas: criação de associações e partidos políticos pró-Pequim; sedução da elite financeira, industrial e comercial; e injecção de quadros leais na máquina administrativa do Governo.
Aquilo com que o regime comunista não contava era a força da sociedade civil em Hong Kong, construída durante um período de 150 anos em que a cidade teve de aprender a desenrascar-se. Apanhada entre a indiferença da administração inglesa e a instabilidade política e social do interior da China, a comunidade chinesa criou uma multitude de associações culturais, de auxílio mútuo e de vizinhança, além de uma rede de contactos do outro lado da fronteira.
A maior prova do poder da sociedade civil foi dada em 2014, quando uma série de protestos – chamada de “Umbrella Revolution” – contra a reforma eleitoral proposta por Pequim paralisou durante meses o centro de Hong Kong. Isto após, já em 2003, uma mega manifestação com mais de meio milhão de pessoas ter obrigado o então Chefe do Executivo, Tung Chee-hwa, a deixar cair a polémica lei de segurança nacional.
Desde o falhanço da reforma eleitoral que o Partido Comunista apertou o cerco, recrutando o apoio das tríades do crime organizado e fazendo um aproveitamento político das leis de Hong Kong para afastar e reprimir a oposição política. Mas a sociedade civil continua bem viva, pelo menos a julgar pelas 130 mil pessoas que saíram à rua há três semanas contra uma controversa lei que permitiria a extradição de activistas políticos para o interior da China.
Ao ignorar o poder da sociedade civil de Hong Kong e optar pelo confronto em vez do diálogo, o regime comunista radicalizou uma fatia significativa da juventude da região – que agora se revê nos chamados “localistas”, alguns dos quais defendem até a independência da cidade – e empurrou mesmo alguns democratas moderados para fora da esfera política. Como provam os recentes confrontos entre deputados no parlamento de Hong Kong, a região é um armazém de panchões que pode não sobreviver até ao próximo Ano Novo Lunar.
Foto de destaque: Mayastar