Queixas ao vento
Os utilizadores da versão chinesa do WeChat tiveram uma surpresa há cerca de uma semana, quando, ao acederem à mais popular rede social na China, receberam uma mensagem não de um qualquer amigo, mas do Governo. As autoridades tinham acabado de lançar dois novos mecanismos, um que permite à população enviar sugestões ao gabinete do Primeiro-Ministro Li Keqiang, e outro para apresentar queixas.
Os cidadãos podem explicar como uma política do Partido Comunista está a causar problemas à economia ou à sociedade, podem queixar-se do trabalho de qualquer departamento da Administração e ainda denunciar autoridades locais que não estejam a implementar políticas do Governo Central ou o estejam a fazer de forma deficiente.
Apesar de ser uma novidade, estes mecanismos vêm no seguimento de uma tradição milenar chinesa, a petição ao imperador, recuperada pelo Partido nos anos 50 e que aliás também já chegou ao WeChat em 2016. Tal como acontecia antes da revolução comunista, a principal razão por trás desta tradição – e do novo mecanismo para apresentar queixas – é a falta de recurso dos desmandos das autoridades locais, num país onde os tribunais estão legalmente subordinados ao regime.
O Partido conseguiu cultivar no exterior o mito de uma China unida e homogénea, liderada por um aparelho de estado que controla toda a sociedade. Mas longe de Pequim, os governos locais têm um enorme nível de liberdade para implementar, ou simplesmente ignorar, as políticas das autoridades centrais, que por décadas se preocuparam apenas em garantir que o crescimento estatístico do Produto Interno Bruto seguia constante.
Um exemplo recente vem da província de Shandong, onde 163 quadros do partido foram no mês passado acusados de fazer vista grossa à ordem do Partido para limitar a produção de alumínio, de forma a reduzir a poluição, apontada por estudos de opinião como a principal preocupação da população chinesa. Em 2017 a produção de alumínio em Shandong chegou a 12,6 milhões de toneladas, quando o máximo era de apenas quatro milhões.
A surpresa surge da forma pública como o Ministério chinês da Ecologia e Ambiente denunciou o caso, identificando as cidades incumpridoras. Isto num país conhecido por abafar até ao extremo escândalos como as escolas que caíram como castelos de cartas durante o grande terramoto de Sichuan em 2008, o leite com plástico que afectou 54 mil bebés no mesmo ano, ou as vacinas de “qualidade suspeita” detectadas no ano passado.
Só o tempo dirá se é um sinal que o Partido está levar a sério o descontentamento da população com a corrupção e os abusos do aparelho estatal. O mecanismo de queixas no WeChat promete que, se o problema referido pelo cidadão for sério ou recorrente, o Governo Central irá investigar, denunciar publicamente a situação e resolvê-la.
Flores secas
O principal obstáculo que este mecanismo enfrenta é reconquistar a confiança dos chineses, erodida pela forma como o Partido tem sabotado a tradição da petição. Têm proliferado as “prisões negras”, centros extrajudiciais onde são detidos aqueles que chegam a Pequim para apresentar petições.
Mesmo o mecanismo para enviar sugestões a Li Keqiang pode dar origem a comparações com a campanha das “Cem Flores”, lançada por Mao Zedong em 1956 e que encorajava os cidadãos a partilhar abertamente a sua opinião sobre o regime comunista. Mao usou a campanha para logo de seguida acusar os críticos de traição.
A reacção habitual do Partido à crítica voltou a repetir-se recentemente, quando Xu Zhangrun, um respeitado constitucionalista na Universidade Tsinghua foi suspenso e colocado sob investigação após ter escrito um artigo – no estilo clássico de uma petição ao imperador chinês – em que pedia a eliminação dos privilégios dos oficiais do regime comunista, a divulgação dos bens dos líderes chineses, o fim do culto de personalidade em torno de Xi Jinping e o regresso ao limite de dois mandatos para o presidente.
Xu pedia ainda uma revisão do veredicto oficial que decretou que as tropas envolvidas no massacre de Tiananmen, em 4 de Junho de 1989, agiram de forma correcta ao reprimir “um golpe contra-revolucionário”. Um assunto mais do que sensível, numa altura em que a polícia chinesa está em alerta máximo para impedir quaisquer manifestações durante o 30º aniversário do massacre.
Não admira que muitos cidadãos chineses considerem qualquer mecanismo de recurso ou queixa algo inútil ou até perigoso. Outros preferem recorrer ao estrangeiro, como por exemplo à plataforma de partilha de código de software GitHub, que se tornou o centro dos protestos contra o 996 (das nove da manhã às nove da noite, seis dias por semana), defendido pelos gigantes tecnológicos chineses. Mas ainda antes o GitHub já tinha sido o local escolhido para partilhar software que serve para fazer batota numa aplicação, lançada pelo Partido, que exige actualmente aos membros que leiam um número mínimo de artigos sobre o pensamento de Xi Jinping.
Apesar do próprio nome do software ser um insulto à aplicação sobre o pensamento de Xi Jinping, o Partido não se atreve a bloquear o GitHub, uma vez que a plataforma é uma fonte vital de código usado por toda e qualquer empresa chinesa com presença na Internet. A integração da China na economia mundial obrigou à abertura de uma pequena válvula de escape para o descontentamento da população. Resta ver se será suficiente.
Foto: Gauthier DELECROIX – 郭天