Canibalismos, fake news e o centenário do 4 de Maio na China
Revisitar o movimento do Quatro de Maio no seu centenário é reconhecer a complexidade dos desdobramentos e também de tudo aquilo que não se desdobrou das manifestações estudantis e populares que sacudiram a China em 1919. É olhar para tais movimentações, acompanhando os passos que deram margem ao estopim da marcha em Beijing. Deu-se a catarse dos acúmulos e resistências das decadências e humilhações que desejavam seu fim. E veio manifesto no ato de entregar ao Japão a concessão do território alemão de Shandong por definição do Tratado de Versalhes.
Por esta ocasião, o caminho em direção a novas possibilidades de organização, entendimento e existência se fizeram num processo sociopolítico, cultural, mediático e sobretudo literário. A experiência de ser libertário: do deslocamento do compromisso em ser literal dando vazão ao experimental, racional, ficcional, canibal.
Estamos perante um império milenar destronado há pouco, um cenário político ainda em definição, que mais tarde se tornaria uma República Popular comandada por um líder que chegou ao poder por promover uma grande marcha pela China campesina, e que à época da ebulição do movimento estudantil também esteve presente – Mao era bibliotecário na Universidade de Beijing.
Havia a necessidade de lidar com o fato de não mais ser o Império do Meio e com as consequências de não mais predominar como influenciador para o resto do mundo… Também de compreender a necessidade de se modernizar, de se fortalecer militarmente, de se inovar tecnologicamente e deixar a vaidade de lado, essa de considerar os povos do Ocidente como bárbaros, povos pouco evoluídos diante da magnitude a que estavam configurados milenarmente, passando pelo ato de serem governados pelo escolhido dos Céus. Impôs-se a necessidade em sua conjuntura de se relacionar e reconhecer as dinâmicas modernas das relações internacionais e do sistema de blocos, a preparacão não planejada para o território das transformações estruturais que conduziriam à revolução do 4 de maio.
As mudanças chegariam também na relação da escrita, no papel do carácter, o elo de ligação da comunicação, estabelecido pelo símbolo fonético de conceitos. A alternância da interpretação concedida ao entendimento da leitura como decorrido de novos estilos literários do Movimento do Quatro de Maio foi em si uma revolução, permitiu mobilidades: a mobilidade intelectual e cultural de uma geração em busca do outro lugar (utopia), do melhor lugar (eu-topia) e do lugar nenhum (u-topia). A premissa em tornar-se cosmopolita, a urgência da reinvenção, o reimaginar sua modernidade e voltar a ser global, superando o resquício feudal. É que a moral feudalista da elite confucionista e sua população geralmente conservadora se apegavam ao que consideravam a essência cultural e a ordem social, temiam inovações na importação de textos de língua estrangeira e de tecnologia ocidental.
Foi entretanto no próprio conceito de “lǐjiào” (禮教), código entendido e adotado no sistema convencional moral como etiqueta social, que se pôde atingir as novas interações e a repaginação no ato de aproximar linguagem popular e vernacular. Um dos principais expoentes deste movimento revolucionário cultural, o escritor Lu Xun, contribuiu para este estado de maior fruição nas relações entre literatura e leitores. Ljiào, inicialmente então destinado ao significado de etiqueta, engessado num sistema rígido e regido pelo convencional da moral social, passou a caber noutra interpretação: o poder de transformar a vida.
Estas metamorfoses decorridas do canibalismo da língua, das possibilidades de um novo interpretar geraram reações, contestações sobre este novo legado não adotado e desqualificado por quem não se identificava com esta visão. O choque de posicionamentos e a fluidez do que há milênios se configurava organizado de outra maneira geraram desconfortos, negações, embates e difamações.
Houve um levante contrário a criticar e a reduzir a existência do Quatro de Maio como um movimento, uma tendência literária e um conjunto de conceitos e crenças, atribuindo-lhe a condição de “fake news” , foi esta a denominação dada aos escritos fictícios, as “ notícias falsas”, mesmo diante do próprio realismo, do estilo literário também experimentado pelos escritores.
Estamos perante uma China em seu próprio reinvento no advento de deixar de ser Império e na mesma altura a ser questionada sobre o teor do entreguismo em prol do modernismo; a humilhação enfrentada pela derrota no simbolismo de deixar o espaço dinástico ao Japão.
Passados cem anos, às vésperas do centenário do Quatro de Maio, chega ao fim a Era Meiji no Japão. A história a proporcionar efemérides de casualidade. E fica a oportunidade para a reflexão da modernidade, dos movimentos e revoluções, os canibalismos e as notícias falsas.