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política e sociedade

Filhos de um deus menor

April 9, 2019

Filhos de um deus menor

Há uns anos encontrei a minha esposa a teclar furiosamente no telemóvel com um ar de extraordinária concentração. Quando lhe perguntei o que se passava, ela explicou-me que estava a tentar dissuadir uma amiga que queria casar com um homem que ela sabia ser homossexual só para poder ter filhos. “Mas se ela quer assim tanto filhos, qual o problema de ser mãe solteira?” perguntei eu. A minha mulher olhou para mim como se eu fosse idiota. Só mais tarde percebi porquê.
Afinal, em Portugal, por exemplo, há dois anos que mulheres solteiras podem recorrer à procriação medicamente assistida no sistema público de saúde. Mas em algumas províncias da China só filhos frutos de um casamento podem obter o hùkǒu  (戶口), o mais importante documento de identificação chinês, sem o qual não podem frequentar escolas públicas ou receber assistência social. Em outras províncias as mães solteiras são obrigadas a pagar uma elevada multa – eufemisticamente chamada de “taxa de manutenção social”.
Esta discriminação não atinge somente as mães solteiras, mas aumenta também a pressão que sentem as chinesas para encontrar um marido. A isto alia-se a obsessão com ter filhos antes dos 30 anos de idade, devido a receios infundados de um aumento exponencial dos riscos de saúde para a mãe e o bebé. Tudo conspira para empurrar mulheres como a amiga da minha esposa para casamentos apressados ou desastrosos.
Estes obstáculos legais e a condenação social de que as mães solteiras são alvo – incluindo despedimentos sem justa causa – reflectem o conservadorismo da sociedade chinesa. Embora o líder revolucionário Mao Zedong tenha jurado que o Partido iria pôr um fim às amarras feudais que prendiam aquelas que “sustentam metade do céu,” na realidade pouco mudou. Às mulheres revolucionárias era exigido que aceitassem o marido recomendado pelo Partido, uma prática que se manteve mesmo após a vitória sobre os nacionalistas do Kuomintang e da qual os meus sogros são um exemplo.
O Governo chinês ainda hoje encara a família tradicional – excluindo também os casais do mesmo sexo – como a unidade básica de uma sociedade harmoniosa, um conceito fundamental da filosofia de Confúcio. O presidente Xi Jinping tem tentado reabilitar o famoso pensador de forma a preencher o vazio espiritual criado pelas políticas anti-religião do Partido Comunista. Aliás, para proteger a família tradicional, nos últimos anos, as autoridades têm mesmo tentado bloquear o que chamam de “divórcios irracionais”, por exemplo, obrigando os casais a esperar pelo menos um mês antes de avançar com o processo.

Surpresas na gaveta

Não admira então a surpresa que causou nas redes sociais chinesas quando, a meio de Fevereiro passado, um jornalista do Beijing News avistou uma simples folha A4 afixada numa esquadra de polícia da capital. O papel referia os passos que as mães deveriam seguir para o registo – e obtenção do “hukou” de Pequim – de filhos nascidos fora do casamento, incluindo um teste de paternidade. Mais tarde as autoridades confirmaram ao jornalista que já não era preciso pagar multa. Mas as surpresas não ficaram por aí. As autoridades confirmaram ainda que esta política tinha sido implementada já em 2016 mas que, aparentemente, só agora foi tornada pública. Por um lado, este atraso reflecte a falta de transparência da governação chinesa, onde as decisões são tomadas à porta fechada e só anunciadas quando traz benefícios ao Partido.
Esta política esteve escondida durante três anos porque as autoridades receiam que grupos mais conservadores – nomeadamente a Federação Nacional das Mulheres – pudessem vislumbrar nestas medidas uma promoção dos filhos fora do matrimónio. Mesmo Huang Xihua, a deputada que defendeu durante a última sessão da Assembleia Popular Nacional chinesa, no mês passado, o fim das multas para mães solteiras em todo o país, sublinhou numa entrevista que o objectivo “não é encorajar a maternidade fora do casamento” mas sim proteger os direitos das crianças.
Ao contrário do Ocidente, onde já existe um grupo significativo de mulheres que escolheram ser mães solteiras, na China este termo evoca não apenas mulheres abandonadas pelos maridos ou namorados, mas também “xiǎosān” (小三), amantes de homens ricos, poderosos e já casados, como por exemplo oficiais do Governo e executivos de empresas estatais. Aliás, muitos chineses defenderam nas redes sociais que a proposta da Huang Xihua iria precisamente encorajar mais maridos a ter filhos com as amantes.
Estas preocupações encontram eco em Xi Jinping, que tem repetidamente tentado policiar o comportamento dos funcionários públicos. A face mais visível tem sido a campanha anticorrupção, que já apanhou na sua rede muitos dos chamados “tigres”, oficiais que tinham poder e reputação. Mas o Partido tem também tentado reforçar a imagem do funcionário público como um humilde servidor do povo, punindo aqueles que ostentam riqueza ou se comportam de forma menos própria no foro privado, nomeadamente mantendo amantes.
Um dos muitos motivos que levaram os nacionalistas do Kuomintang a perder o apoio da população chinesa após a vitória sobre o Japão foi a corrupção. Pelo contrário, os comunistas prometeram uma sociedade nova, onde não haveria espaço para o senhor feudal com as suas muitas concubinas e filhos bastardos. Hoje em dia, quando o Partido e a sociedade já pouco têm de comunistas, Xi Jinping teme que os chineses, como escreveu George Orwell, no final de “O Triunfo dos Porcos”, deixem de ver diferenças entre os porcos e os homens.

 

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