Semeando ódios
No passado dia 15 de Março, um supremacista branco matou 50 pessoas a tiro num ataque a uma mesquita e um centro islâmico em Christchurch, na Nova Zelândia. Nove minutos antes, o extremista tinha enviado aos média e à primeira-ministra Jacinda Ardern um manifesto de 73 páginas onde explicava a ideologia por detrás do ataque.
O documento inclui elogios não apenas a outros terroristas como o norueguês Anders Behring Breivik mas também, inesperadamente, ao Partido Comunista Chinês. “A nação com os valores políticos e sociais que mais se aproximam dos meus é a República Popular da China”, escreveu o atirador. O extremista defendia ainda que o poder da China advém do facto de ser “um país não-diversificado”, ou seja, da sua homogeneidade étnica.
Pequim enviou condolências à Nova Zelândia após o ataque mas, curiosamente, sem mencionar os muçulmanos ou a islamofobia demonstrada pelo terrorista. Além disso, ao contrário das figuras públicas mencionadas no manifesto, o Partido Comunista não rejeitou os elogios do atirador.
Ao contrário das redes sociais ocidentais como o facebook, que rapidamente retirou milhões de vídeos que mostravam o ataque gravado ao vivo pelo atirador, dois dias depois do atentado, as imagens continuavam a circular tanto no Weibo como no WeChat, a versão chinesa do Facebook, e no Baidu Tieba, um dos maiores fóruns online do país.
Para alguns analistas, este atraso invulgar por parte da censura chinesa foi intencional e visou criar uma imagem do ocidente democrático como um local perigoso, nomeadamente a Nova Zelândia, que deverá em breve divulgar um relatório sobre interferência estrangeira – sobretudo chinesa – na política do país. O jornal estatal Global Times defendeu mesmo que a supremacia branca fazia parte dos “chamados valores universais do Ocidente”, algo que o regime chinês há muito rejeita. Outro objectivo foi usar o massacre como um exemplo do que a China diz ser o fracasso da integração dos muçulmanos nos países ocidentais.
Os demónios e a polícia
Embora o atacante não o tenha mencionado, as redes sociais chinesas rapidamente estabeleceram uma ligação com a repressão da minoria muçulmana Uigure por parte das autoridades chinesas, sobretudo na província de Xinjiang.
No Weibo, a versão chinesa do Twitter, dezenas apontaram o dedo ao que a imprensa internacional “propaga sobre a nossa gestão dos muçulmanos em Xinjiang. (…) Ele foi influenciado pelos média estrangeiros, que espalham esta ideia de que somos anti-muçulmanos”, escreveu um cibernauta.
Por outro lado, houve muitos mais que aproveitaram a ocasião para expressar ódio pelos muçulmanos e pelo Islão. “Segundo os ensinamentos de Allah, eles vão todos para o céu, devemos ficar contentes por eles”, disse um cibernauta. “Não somos racistas, somos simplesmente chineses normais, anti-islâmicos”, escreveu uma chinesa. Um entre muitos comentários racistas que a rigorosa censura governamental deixou passar.
A reacção da opinião pública chinesa não é surpreendente. As denúncias vindas do Ocidente falam de uma longa campanha de repressão social, cultural e sobretudo religiosa dos muçulmanos, que exacerbou a tensão entre esta minoria e os han que migraram para Xinjiang nas últimas décadas. No entanto, Pequim tem sido bem-sucedido em convencer a população que o envio de um milhão de Uigures para campos de reeducação é a única solução para travar o radicalismo islâmico e pacificar a região.
Mesmo longe do Weibo, controlado pela censura chinesa, qualquer crítica expressa no Twitter à política do Partido Comunista para Xinjiang invariavelmente leva como resposta uma referência a um dos vários atentados levados a cabo pelos extremistas muçulmanos. Tal como aconteceu com outros grupos durante a Revolução Cultural, o governo chinês conseguiu agora demonizar os Uigures como inimigos públicos, obtendo assim a aceitação tácita da maioria han para uma avalanche de medidas securitárias que tornaram a China no mais avançado estado policial do mundo.
“Tumor maligno”
O resultado é uma enorme desconfiança face a tudo o que seja islâmico. Isto apesar da religião muçulmana estar presente na China há cerca de 1400 anos, de forma pacífica e com comunidades significativas e mesmo mesquitas em cidades como Guangdong, bem longe de Xinjiang. Por várias vezes tive chineses a perguntar, ao ver a minha barba, se era muçulmano. Não conseguiram esconder o ar de alívio ao saber que não era o caso.
O atentado na Nova Zelândia voltou a trazer à tona da água esta desconfiança e preconceito que, tal como acontece com a comunidade cigana em Portugal, dificulta a integração da comunidade islâmica. “Os muçulmanos na China ficaram calados quando foi dos ataques [extremistas islâmicos] em Kunming [em 2014], mas agora que este massacre aconteceu na mesquita dos anti-carne de porco, estão todos a lamentar o estado do universo e a denunciar o terrorismo”, alegou um cibernauta no Weibo.
O próprio Partido Comunista Chinês chegou ao ponto de, numa mensagem áudio enviada aos Uigures através do WeChat em 2017, descrever o Islão como uma doença mental ligada a “uma ideologia extremista” que deve ser encarada como “um tumor maligno incurável”.
Fomentar este tipo de ódio pode ter benefícios a curto prazo, mas como dizem os chineses, 恶有恶报 (è yǒu è bào), ou em bom português, quem semeia ventos colhe tempestades.