Ljungstedt e a primeira história de Macau
Na bibliografia de Macau há uma lacuna importante. Falta uma história do território, digamos, abrangente. E digo isto porque o que se tem publicado sobre o assunto não passa quanto muito de trabalhos de maior ou menor fôlego, mas sempre parciais, já que mal referem o papel que outras comunidades, para além da portuguesa, por aqui tiveram. E não me refiro só à comunidade chinesa. Falo também, por exemplo, do papel desempenhado por americanos, ingleses, franceses, alemães, filipinos e outros que em Macau viveram e actuaram.
Apesar de recentemente terem surgido alguns trabalhos bastante mais abrangentes, de alguns seguidores de Alan Brodel, que privilegiam as fontes locais, certo é que apesar das promessas não viremos a ter tão cedo uma verdadeira história de Macau.
Todavia, independentemente do que foi e das perspectivas de futuro que se perfilam, também é certo que na bibliografia da história local não podem deixar de se salientar alguns marcos de relevo.
Um deles chama-se An Historical Sketch of the Portuguese Settlements in China. Trata-se de um livro que tem conhecido sucessivas edições e reedições em várias línguas e em vários países. A primeira foi dada à estampa nos EUA em 1836. É uma obra curiosa feita por um homem que era tudo menos historiador e que a escreveu ao que parece com o propósito principal de provar que nunca a dinastia Ming, alguma vez e em circunstância alguma, concedeu a Portugal a soberania de Macau.
Anders Ljungstedt era sueco. Nascido no seio de uma família pobre na cidade de Linkoping, conseguiu mesmo assim frequentar a universidade de Upsala, ainda que por apenas algum tempo. No entanto, privado de meios, acabaria por ser forçado a abandonar os estudos superiores. Emigrou depois para a Rússia, onde foi professor e tradutor do rei sueco Gustavo Adolfo ao longo de dez anos.
Mais tarde, seria contratado pela Companhia Sueca das Índias Orientais e acabaria por passar a residir em Macau como um dos seus principais agentes comerciais.
Aqui, a fortuna acabaria por lhe sorrir, tornando-se num abastado comerciante. Porém, ao contrário da maioria dos seus contemporâneos que regressavam aos seus países de origem quando atingiam a idade da reforma, Ljungstedt não o fez. Afeiçoou-se à terra adoptiva e por cá resolveu ficar e escrever a sua história. Para isso socorreu-se dos inestimáveis arquivos da igreja católica local, que lhe foram franqueados pelo bispo, seu amigo, apesar de professarem religiões bastante distintas e viverem num tempo muito anterior ao da tolerância e do diálogo ecuménico do Papa João XXIII.
Seja como for, certo é que Ljungstedt aproveitou esse espólio e se dele não retirou as conclusões que melhor agradariam às autoridades portuguesas e ao seu amigo prelado, pelo menos teve o inestimável mérito de salvar importantes informações sobre o passado de Macau, que de outra forma se acabariam por perder – e muito se perdeu, porque quem tinha obrigação de zelar pelos documentos não o fez e tudo foi desaparecendo pela corrosão do desleixo e da formiga-branca.
Para além desta história de Macau, Ljungstedt deixou-nos mais alguns trabalhos, pelos quais seria reconhecido e agraciado com a condecoração da Ordem de Vasa, pelo rei da Suécia em 1820. Chegou a ser também cônsul-geral da Suécia na China. A escola secundária da sua terra Linkoping, onde nunca mais regressaria, ostenta hoje o seu nome.
Macau também lhe dedicou memória, descerrando uma placa toponímica a ele dedicada numa das ruas do NAPE, ainda que o tenha feito tardiamente, mais de um século depois da sua morte, em 1835. está sepultado no cemitério protestante, que se ergue paredes meias com a “Casa Garden” no Largo de Santo António.
Creio que será justo salientar que a primeira história de Macau, encare-se ela como se quiser, foi aquela a que nos temos vindo a referir e que foi escrita por Ljungstedt.
A segunda só seria dada à estampa mais de um século depois, já nos anos trinta do século XX, também escrita em inglês, mas da autoria do intelectual macaense Montalto de Jesus.