As-tu vu Cremet?
Quando os bolchevistas, que era assim que se chamavam naquele tempo, fizeram a revolução na Rússia, davam apenas o primeiro passo para algo mais universal: fazer a revolução no mundo inteiro. Este desígnio era uma consequência natural da aplicação das ideias de Marx e Engels do internacionalismo proletário, postas em prática por Lenine. Não se tratava de um tumulto destinado a acabar apenas com o Czar da Rússia, mas com todos os “czares” em todos os países.
Quando Eisenstein filmou a grande convulsão da Rússia de 1917, filmava apenas o primeiro de uma série de sucessos que viriam a dividir o mundo em dois, a consagrar a luta de classes e a consagrar também um novo hino, não de um país, mas dos trabalhadores de todos os países. A Internacional.
Nesta conjuntura ideológica era preciso dar organização ao grande empreendimento de conquista global que a empresa requeria e isso aconteceu logo nos primeiros tempos da ascensão ao poder do Partido Comunista da União Soviética, com a organização do “Comintern”.
Mas o que era o “Comintern”? Na prática era o comité central do partido comunista mundial, ou seja uma superestrutura baseada em Moscovo, que controlava os partidos comunistas já formados ou em formação em todos os continentes. A direcção do “Comintern”, sediada em Moscovo, e dirigida por Manuilsky, um dos míticos revolucionários que rodearam Lenin desde a primeira hora, estava dividida em departamentos, que controlavam o mundo por áreas geográficas. O Partido Comunista Português, por exemplo, era controlado directamente pelo próprio Manuilsky.
Ao que parece, os agentes do “Comintern” não seriam mais de 200, número aparentemente reduzido para tarefa tão ciclópica que era essa de organizar os comunistas do mundo inteiro, dar-lhes consistência política e ideológica e prepará-los para derrubar as ordens burguesas ou feudais estabelecidas.
Entre esses agentes, sobre a maioria dos quais pouco ou nada se sabe, figuram no entanto alguns nomes que ficaram na história. Ho Chi Minh, o fundador da República Popular do Vietname era um deles, nesta região do mundo. Outro era o francês Jean Cremet.
Mas quem era este? O que dele se sabe é pouco e está reproduzido na obra de Roger Faligot e Remi Kaufer intitulada “As-tu vu Cremet?” um profundo trabalho de investigação levado a cabo por dois autores com créditos firmados nesse género de literatura. Essa investigação levou anos a fazer e só conheceu a luz do dia graças ao facto dos arquivos do “Comintern” em Moscovo terem finalmente sido abertos à consulta dos especialistas depois da queda do Muro de Berlim, embora pouco depois tenham sido de novo encerrados à consulta pública nunca mais voltando a ser reabertos até hoje.
Jean Cremet interessa particularmente a Macau, tendo em conta que era este comunista francês que, como agente do “Comintern”, controlava a região do Extremo Oriente onde se incluía a China, o Japão, o Vietname – integrado então na denominada Indochina francesa – e a Coreia, entre outros países e colónias.
Durante anos, Jean Cremet movimentou-se clandestinamente por essas paragens exóticas e mais ou menos ignotas, utilizando variadíssimas identidades falsas e foi assim que esteve em Macau, durante as primeiras décadas do século XX um dos quartéis-generais da secção extremo oriental do “Comintern”, quase sem ninguém dar conta.
Ho Chi Minh era, com ele, dos poucos a partilhar os segredos contidos nos planos de subversão estabelecidos para esta região do Mundo, nomeadamente a fundação do Partido Comunista do Vietname, que teve lugar em Macau, com a realização do primeiro congresso do partido, no velhinho Hotel Cantão, situado no centro do dédalo de vielas perto da Ponte 16.
Jean Cremet que com Ho Chi Min tinha sido um dos fundadores do Partido Comunista francês, teria um percurso de vida radicalmente diferente deste. Enquanto Ho Chi Minh depois de anos e anos de luta clandestina haveria de chegar triunfante à ribalta como líder máximo do Vietname independente, Jean Cremet nunca sairia da clandestinidade. E a razão para isso prende-se apenas e só com o facto de Ho Chi Minh, no auge da luta pelo poder entre Leon Trotsky e José Estaline, ter alinhado politicamente com este, enquanto Jean Cremet, bem pelo contrário, se absteve no acto de votação exigido aos militantes comunistas sobre a expulsão do partido de Trotsky. Essa atitude valeu-lhe naturalmente uma implícita sentença de morte da facção triunfante. Aliás, todos os agentes do “Comintern” que não tomaram uma posição clara contra Trotsky acabariam por ser um a um fisicamente eliminados pelos homens do ditador georgiano. Diga-se que a desconfiança de Estaline não se restringia aos agentes, mas ao próprio “Comintern” eivado de um internacionalismo que não lhe agradava. Essa desconfiança levou à extinção dessa organização e à fundação de uma outra, semelhante nalguns pontos, o “Cominform”, cujos princípios se coadunavam mais com a política de consolidação do comunismo num só país do que com o internacionalismo proletário.
Jean Cremet apercebeu-se da sentença que sobre ele pendia e com a ajuda do escritor André Malraux, então cônsul de França em Xangai, conseguiu simular a sua própria morte em Macau. Para o efeito fez difundir por quem interessava a notícia de que se tinha afogado ao cair do “ferryboat”, que fazia a carreira entre Macau e Hong Kong, versão que Malraux se encarregou de contar também, acrescentando pormenores, nos “mentideros” diplomáticos da China.
Entretanto Cremet mudava de identidade, possivelmente de aspecto e regressava à Europa passando a viver na Bélgica, onde ficaria escondido nas sombras de uma clandestinidade de que nunca mais emergiu até à sua morte, ocorrida em 1968. A simulação foi tão bem feita que os agentes do próprio “Comintern”, que foram enviados a Macau para esclarecer o caso, reportaram o incidente do afogamento de Cremet a Estaline como verdadeiro, o que levou ao encerramento das investigações, e em última instância, à salvação do próprio Cremet.
“As-Tu Vu Cremet?” é uma história de aventuras, espionagem, traições e redenção, que acrescenta mais um véu ao exotismo misterioso da Macau dos anos de 1930, que a literatura e o jornalismo mundiais descreveram exaustivamente, mas que nunca conseguiram contar-lhe verdadeiramente os segredos. Vale a pena ler este livro e também os outros de Roger Falligot e Rémi Kauffer, especialistas em assuntos desta região do mundo, sobre a qual têm assinado algumas obras de grande interesse, nomeadamente acerca das tríades, operações dos serviços de inteligência chineses ou ainda as actividades da Yakuza, temível seita secreta do Japão.
Sobre a obra
Título
As-tu vu Cremet?
Autor
Roger Faligot e Rémi Kauffer
Ano
1991
Edição
Fayard