O canto do remorso perpétuo
O estatuto de celebridade imortal conquistado por Bai Juyi na história cultural da China fica a dever-se, em primeiro lugar, ao conjunto da sua obra literária, à especificidade da sua pessoa e à sua atitude perante a vida e ao seu romantismo apaixonado, universal, compreensível pelas várias camadas da sociedade.
Mas, a competir com a própria notoriedade pessoal como poeta, está a imortalidade do poema que escreveu sob o título de Chang Hen Ge (长恨歌), que António Graça de Abreu traduziu como o Canto do Remorso Perpétuo.
Tudo o que seja tradução da língua chinesa é quase sempre discutível, no sentido de em geral haver outras alternativas igualmente aceitáveis. A língua chinesa (como aliás muitas outras línguas…) é bastante contextual. Contudo poderia dizer-se que a língua chinesa é bem mais contextual do que as outras.
Em língua inglesa Chang Hen Ge tem sido traduzido como Song of Everlasting Sorrow, Song of Everlasting Regret ou Song of Eternal Sorrow. Em língua francesa, como Chant des Regrets Éternels ou Chant de L’éternel Regret.
Para quem conheça a língua chinesa não é difícil concluir que qualquer das traduções é igualmente aceitável e igualmente discutível. Nada então como analisar o contexto histórico e literário de Chang Hen Ge.
Como o próprio título bem sugere, Chang Hen Ge consiste no canto de uma mágoa perpétua. É um poema narrativo baseado no facto real de uma história de amor entre um dos mais importantes imperadores da dinastia Tang, o já sexagenário imperador Xuanzong (que reinou entre 712 e 756, durante 43 anos) e a sua jovem concubina, cujo nome de nascimento era Yang Yuhuan, mas que ficou conhecida para a posteridade como Yang Guifei, sendo guifei o grau máximo a que, naquela época, uma concubina imperial poderia aspirar. O nome Yang Guifei poderia ser traduzido como “Consorte Yang” mas poderá não fazer muito sentido tentar traduzir um nome que ganhou a sua própria identidade, ficando gravado para todo o sempre na memória colectiva chinesa, através não só do poema de Bai Juyi mas também em peças de teatro de importantes dramaturgos da China imperial. E na própria actualidade a sua história continua a ser recontada através de filmes e séries televisivas. Yang Guifei significa portanto “Yang Guifei”, não há outra guifei que se tenha imortalizado com esta dimensão na história da China.
É uma história de amor, mas uma história trágica. Irremediavelmente enfeitiçado pela rechonchuda e irresistível guifei (na época gordura era mesmo formosura), o outrora diligente e competente imperador perdeu o sentido das responsabilidades, passando a descurar os seus deveres para com o Império. Ao mesmo tempo, diversos familiares de Yang foram promovidos a altos postos públicos, tendo aliás um primo de Yang Guifei chegado ao cargo de primeiro-ministro.
Tudo isso foi criando terreno propício a uma revolta, que acabaria por se concretizar no ano 756, com a tomada da capital do império, Chang’an, pelo general An Lushan (aliás filho adoptivo da própria Yang Guifei e alegadamente seu amante).
O imperador e a corte deixaram secretamente a capital Chang’an a caminho de Chengdu, acompanhados pela guarda imperial que, durante esse trajecto, acabaria por se revoltar contra o próprio imperador e exigido a morte de Yang Guifei, que acabou por ser concretizada com o assentimento forçado do próprio Xuanzong.
Como reconstituiria mais tarde Bai Juyi:
“(…) a vinte léguas da capital os seis batalhões recusam continuar.
A menina das sobrancelhas finas é estrangulada diante dos cavalos,
jazem por terra os enfeites de seus cabelos, ninguém os recolhe,
penas de martim-pescador, um pássaro de ouro, alfinetes de jade.
O imperador esconde o rosto, não foi possível salvá-la,
chora, suas lágrimas misturam-se com o sangue da beldade morta.”