Macau já teve o momento George Floyd
A discussão à volta da remoção de estátuas de figuras históricas ligadas à escravatura ou ao passado colonial não chegou a Macau. O momento George Floyd já passou. Foi em 1966, quando, no arranque da Revolução Cultural, uma revolta popular contra a administração portuguesa fez cair a estátua do oficial do exército Nicolau de Mesquita.
Quando, no início de Junho, estátuas de personagens históricas ligadas ao passado colonial e esclavagista começaram a ser derrubadas nos Estados Unidos, a remoção da figura de bronze do coronel Nicolau de Mesquita, meio século antes, pareceu ao escritor Joe Tang o paralelo mais óbvio em Macau. No Largo do Senado, lugar nobre da cidade, resistiu a estátua do militar 26 anos. Até que em 1966 foi arrancada do pedestal e arrastada pelas ruas da cidade em pleno ‘1,2,3’, movimento popular em contestação da administração portuguesa, inspirado pela Revolução Cultural, e que por pouco não antecipou o regresso de Macau para a China.
Nicolau de Mesquita é visto por muitos como o último herói romântico de Macau. Na Batalha de Passaleão (1849), vingou a morte do governador João Maria Ferreira do Amaral, mas o trágico final de vida deste militar, que num acesso de loucura matou a filha e a mulher antes de se suicidar, acabou por relegar o macaense para um lugar de desonra, sem direito a funeral militar e a sepultura cristã. Mesquita foi apenas resgatado desse limbo histórico trinta anos depois e, já de imagem reabilitada, imortalizado numa estátua, encomendada pelo Estado Novo em 1940 ao escultor Maximiliano Alves “em homenagem da colónia ao herói macaense”. Encontra-se hoje na Bataria da Lage, em Oeiras.
Nicolau de Mesquita não é exemplo único na vasta galeria de figuras históricas portuguesas que ocupavam (e ocupam) o espaço público de Macau e que, por várias ocasiões, causaram embaraço às relações luso-chinesas. Mas a queda da estátua do coronel “é em muito semelhante” ao movimento que agora Joe Tang assiste de longe. “A raiva da população, o esmagamento de um símbolo”, descreve o escritor.
Do movimento ‘1,2,3’, escapou ileso um outro símbolo projectado pelo regime de Salazar: a estátua equestre do ex-governador João Maria Ferreira do Amaral que, do alto de um imenso pedestal de dez metros, se tornou impossível de alcançar pela ira das massas. Salvou-se, assim, a figura do governante, ainda que 25 anos depois, tenha por fim prestado contas com a história. A estátua do militar, a agitar um chicote perante o olhar aterrorizado de chineses, foi retirada na recta final da administração portuguesa de Macau. Depois disso, o monumento esteve quase uma década encaixotado num armazém, na capital portuguesa, até ser colocado num jardim do bairro lisboeta da Encarnação.
A estátua devia ter sido retirada? “Sim”, responde Joe Tang, natural de Macau, para quem este era um acto necessário. “Não tem a ver propriamente com a pessoa em si, mas com o que ela representa, uma governação de força”.
“Arroubo de nacionalismo” e as estátuas do Estado Novo
Ao serviço da rainha D. Maria II, o governador Ferreira do Amaral deixou de pagar foro do chão à China pela utilização do porto de Macau. A abolição deste tributo, que existia desde o século XVI, veio efectivar a soberania portuguesa sobre o território, que tinha até aí um estatuto incerto. Entre as decisões mais contestadas do governante, estão também a expulsão de vários mandarins de Macau, a abolição da alfândega chinesa e a remoção de centenas de sepulturas em nome do desenvolvimento da cidade. Acções que precipitaram o assassinato de Amaral, em 1849, apenas três anos depois de assumir o comando do governo local. “O que ele fez foi uma afronta, em nome da higiene pública, ao drenar aqueles pântanos de Mong Ha e por aí fora, e a dessacralizar muitas das sepulturas que lá estavam”, começa por dizer João Guedes, historiador de Macau e autor do programa de televisão da Teledifusão de Macau ‘Aqui há História’.
Foi Oliveira Salazar que “mais tarde transformou Amaral em herói”, ao mandar erguer nos aterros da Praia Grande – hoje, Praça de Ferreira do Amaral – uma estátua em honra do oficial da marinha portuguesa. “Era de facto afrontosa para Macau”, nota o investigador.
Do monumento, sabe-se ainda que foi retirado pelo governo português, em 1992, “alegadamente por própria iniciativa, dizendo que não caía bem à população chinesa”. Conta João Guedes que a administração já tinha recebido “recados específicos, embora oficiosos” dos representantes chineses sobre o mal-estar causado pela estátua: “A China não viria nem veio cá para fora dizer: ‘não queremos Ferreira do Amaral ali na praça’. Não mandou dizer pelos canais normais com o governador, mas foi através dos embaixadores e do Grupo de Ligação Conjunto [órgão que preparou a transição do território]. O recado foi passado naturalmente”.
Mas ainda antes de Nicolau de Mesquita e Ferreira do Amaral serem julgados pela história, em Macau outro momento de tensão reivindicou, em 1955, a queda de mais um símbolo da presença portuguesa no Oriente. ‘Quatro Séculos da Amizade Luso-Chinesa’ – era assim que se chamava o monumento de 18 metros mandado levantar para assinalar os 400 anos do estabelecimento dos portugueses em Macau. Mas por ordem do então primeiro-ministro chinês, Zhou Enlai, nem as comemorações aconteceram, nem o monumento permaneceu no morro de D. Maria. Foi demolido nesse mesmo ano.
Caídos os signos da presença portuguesa, João Guedes admite que Macau já teve o momento George Floyd e que apenas uma peça “pode ser controversa” nos dias que correm: trata-se da estátua do Conde Bernardino de Senna Fernandes, “o homem do tráfico de cules [trabalhadores braçais chineses], que era um tráfico muito parecido com o de escravos”. A escultura encontra-se em propriedade privada, na sede da Fundação Oriente, ao lado do Jardim Camões.
De regresso ao centro de Macau, de um banco de rua, onde nos sentamos com João Guedes, olhamos a estátua de Jorge Álvares, também glorificado pelo Estado Novo. “Primeiro navegador que aportou à China – Ilha de Lin Tin – em 1513″, diz a inscrição. A obra de Euclides Vaz, esculpida em pedra lioz, chegou ao território a bordo do paquete ‘Índia’ e foi inaugurada em 1954, já neste local, a então Avenida António Salazar, hoje Avenida Mário Soares. Também o navegador de Freixo de Espada à Cinta escapou à fúria do ‘1,2,3’, mas não antes sem ficar sem o braço direito, entretanto reposto.
Jorge Álvares aparece só, nestes tempos de pandemia. Não há turismo, e as poucas pessoas que passam, seguem indiferentes à figura de pedra. “A estátua é do Estado Novo e de maneira que houve aqui um arroubo de nacionalismo, que desataram aí a fazer estátuas de pessoas, e fizeram um bocado a esmo”, constata o historiador, ao recordar que “Jorge Álvares era apenas um comerciante e que nunca esteve em Macau”. “A estátua não é de algum modo afrontosa”, defende.
Já o escritor Joe Tang relembra uma conversa com um grupo de amigos, oriundo da China continental, que se mostrou surpreendido com a honra prestada ao “primeiro colonialista português”: “Na China, erguer uma estátua tem um significado muito importante, mais ainda do que dar o nome a uma rua”.
Lost in Translation
A devolução a Portugal da estátua de Ferreira do Amaral indicava vontade de apagar signos do passado, mas a verdade é que a memória do ex-governante sobreviveu a mais essa queda e continua hoje a fazer parte do dia-a-dia dos residentes de Macau: uma praça, um istmo, uma rua e uma estrada carregam o nome do oficial português.
É a escassos metros da Rua de Ferreira do Amaral, num restaurante tailandês, o ‘Heavenly Offer Vegetarian’, que falamos com Joe Tang, autor de ‘Assassino’, obra sobre a morte do ex-governador. Ora, a Rua de Ferreira do Amaral recebeu primeiro o nome em português e só depois foi baptizada em chinês, sendo que a denominação escolhida não faz qualquer referência ao ex-dirigente – a via chama-se ‘dung mong joeng gaai‘, que numa tradução livre significa ‘rua da guia’.
Joe Tang acredita que o facto de não se fazer uma tradução directa da versão portuguesa é uma forma de não impor a memória destas figuras à população. “Penso que as pessoas antes de nós já tentaram resolver este problema”.
O escritor realça também que há ainda um grande desconhecimento sobre a história de Macau por parte da comunidade local e que a figura de Amaral continua a ser ignorada por muitos. Tang recua a uma palestra que deu na Universidade de Macau. “Apenas uma ou duas pessoas levantaram a mão para responder, quando questionadas sobre quem foram o ex-governador ou Shen Zhiliang, o homem que o assassinou. E este era suposto ser o herói”, salienta.
Outro exemplo de como a história por vezes fica pelo caminho: a principal artéria da cidade, a Avenida Almeida Ribeiro, é uma homenagem a Artur Rodrigues de Almeida Ribeiro, político português que nunca esteve em Macau, mas que sancionou a verba para a expropriação das casas para a abertura desta mesma avenida. Em chinês, o nome da via é ‘aa mei daa lei bei lou‘, a tradução fonética das palavras ‘Almeida Ribeiro’, embora não seja esse o nome pelo qual a avenida é mais conhecida pela população: ‘san maa lou‘, ou seja ‘estrada nova’.
A homenagem a personalidades portuguesas ligadas ao território, mesmo que sem qualquer papel de destaque na história de Macau, é ainda hoje muito superior às figuras da comunidade chinesa. Num texto publicado em 1994, na Revista Macau, o historiador João Guedes realça também a forte presença de personalidades ligadas à Igreja Católica na toponímia da cidade: “Apesar da antiguidade da religião budista, do facto de o templo da Barra ser anterior à chegada dos portugueses e de os pagodes se contarem por mais de uma centena na cidade e ilhas, a toponímia macaense soberanamente decidiu ignorar esta fatia maioritária da história. É assim que, apesar de existir o Largo do Pagode da Barra, ou a recentíssima Rua do Kun Iam Tong, não existe em Macau uma única via, nem um esconso beco, que tenham merecido o nome de um monge budista. Em quatrocentos anos, não é crível que pelo menos um ou dois não tenham merecido ficar na história”.
Património para apoiar economia
O debate da remoção das homenagens a figuras históricas controversas, relançado com o homicídio do afro-americano George Floyd, por asfixia, em Mineápolis, nos Estados Unidos, correu mundo e tem contado com cada vez mais apoio do poder político. Em Macau, a discussão não se fez. Razões históricas podem estar na origem deste silêncio, avança o autor Joe Tang, que refere haver pouco interesse da população nas questões políticas locais. E não é de agora. “Também era assim há 100 anos. Macau sempre foi pequena, a tentar equilibrar-se entre grandes potências – britânicos, chineses, americanos – para retirar daí o melhor proveito. Foi isso que os portugueses fizeram. Não vejo diferença entre os chineses e portugueses, é como se vive neste sítio, é uma filosofia de vida”, explica o estudioso que está a escrever um romance histórico sobre a relação entre portugueses, britânicos e chineses durante o período das Guerras do Ópio.
Já o politólogo de Macau Eilo Yu acredita que esta é uma questão geracional. Aqueles que viveram as últimas décadas antes da transição para a China “não estavam felizes com o governo português e não gostam de falar sobre os portugueses”. A população mais jovem, por outro lado, que cresceu já depois da transferência de soberania, e assistiu, em 2005, à inscrição do centro histórico de Macau na lista de património mundial da UNESCO, acredita que o legado português e a preservação deste podem trazer mais à cidade além do jogo, o motor da economia de Macau. “Ao verem este património entrar para a lista da UNESCO, as pessoas acreditaram que esta é uma forma de ajudar a indústria do turismo e isso fez com que sentissem orgulho, como se tivessem sido reconhecidas pelo mundo, pela comunidade internacional”, salienta o professor da Universidade de Macau, afirmando que este legado português tem um “valor instrumental” para a região, que espera retirar daí “proveito económico”.
Mas se, por um lado, Eilo Yu acredita que esta é uma geração que procura conferir ao espaço que habita uma nova identidade, em nome do reconhecimento e da economia, por outro, o académico nota que não há aqui uma busca de uma identidade pessoal. “Não estamos a tentar fortalecer-nos em termos de identidade e valores”.
O futuro dos heróis
A edificação de estátuas ou monumentos, em honra de pessoas ou ideias, existe desde que se começou a fazer arte. Mas “ao continuar a construir estátuas, continuamos a construir heróis”, analisa o politólogo Eilo Yu, salientando que a elevação de figuras históricas tem cada vez menos expressão nas sociedades de cultura chinesa, como Hong Kong e Taiwan. “Não na China continental”, ressalva.
O académico da Universidade de Macau aponta o caso de Taiwan, onde foi aprovada, em 2017, uma lei que prevê a retirada de todos os símbolos de homenagem ao regime autoritário de Chiang Kai-shek, líder nacionalista do Kuomintang que fugiu da China, em 1949, derrotado por Mao Zedong. Pelo menos, 200 estátuas do general foram levadas para um parque no norte da ilha. “[Hoje] os taiwaneses podem não querer identificar indivíduos ou heróis que tenham tido um grande contributo para o desenvolvimento da Taiwan moderna. Eles acreditam que esse é um contributo colectivo. Isto acontece muito em Taiwan e em Hong Kong, mas ainda não estamos nessa fase em Macau”.
Joe Tang concorda. Um povo que precisa de heróis permanece escravo. E o escritor recorre a Bertold Brecht, numa análise ao momento: “Infeliz o povo que precisa de heróis”, escreveu o dramaturgo alemão na peça ‘A vida de Galileu’.
“Antigamente, as pessoas acreditavam em líderes, dependiam deles para resolver os problemas que tinham, mas desde que as sociedades caminham para uma gestão democrática, começou-se a acreditar no poder das pessoas. Não estamos à procura de heróis para nos salvarem, mas juntos, salvamo-nos”, conclui o escritor de Macau. Joe Tang sugere que uma das formas para lidar com “estas estátuas heróicas” é, para já, retirá-las do pedestal, colocá-las de igual para igual com o Homem. “Esta onda de destruição é, talvez, de mais”, assume.
Às duas e meia da tarde, já ninguém se encontra no restaurante ‘Heavenly Offer Vegetarian’. Apenas um funcionário dividido entre pequenas tarefas. Mesmo à saída, um quadro a óleo reproduz um vaso a abundar de peónias, a flor nacional chinesa, também ela rejeitada em tempos pela história. Pousado sobre o balcão, “A governança da China”, livro de Xi Jinping. Na capa, a imagem do presidente.