Zhou Fengsuo: Tiananmen “era o lugar mais importante e também o mais perigoso”
Líder estudantil de Tiananmen, Zhou Fengsuo vive hoje nos Estados Unidos e preside à Humanitarian China, uma organização que apoia presos políticos e promove o respeito pelos direitos humanos. Nesta entrevista, o activista fala da Primavera de 1989, do dia-a-dia na Praça da Paz Celestial e da “mais incrível manifestação pacífica na história da humanidade”, esmagada pelas autoridades a 4 de Junho desse ano.
Zhou Fengsuo conserva em casa uma réplica da Deusa da Democracia, a estátua de dez metros que, na Primavera de 1989, caiu com os estudantes em Tiananmen. A imponente figura fitou durante cinco dias o retrato de Mao Zedong, desde a Praça da Paz Celestial, e foi reproduzida, nos anos que se seguiram, em várias cidades: Hong Kong, São Francisco, Washington e Vancouver. Em casa de Zhou, em Newark, nos Estados Unidos, sobrevive também o símbolo da luta pró-democracia na China.
Nesses finais da década de 1980, Zhou, filho de camponeses com origens nos subúrbios de Xi’an, então a estudar Física na capital chinesa, era já um activo impulsionador da democracia entre os alunos da Universidade Tsinghua: inaugurou a estação radiofónica “Voz dos Estudantes”, organizou as “primeiras eleições livres” para a União de Estudantes e participou no “Salão da Democracia”, onde se debatiam reformas políticas e liberdades.
Tiananmen “era o lugar mais importante e também o mais perigoso para se estar” durante essas semanas que antecederam o massacre de 4 de Junho e que levaram o líder estudantil, primeiro, à prisão de máxima segurança de Qincheng e, depois, ao exílio, nos Estados Unidos. “Quando vi pela primeira vez na televisão que era o quinto homem mais procurado, fiquei chocado e simultaneamente orgulhoso, porque sabia que o que tinha feito era nobre”, recorda.
Numa entrevista por videochamada, feita para uma reportagem transmitida no Canal Macau da TDM e que transcrevemos aqui no EXTRAMUROS, o dissidente fala de um “um massacre brutal levado a cabo por um líder insensato”, e cujo número de mortos ainda hoje é objecto de discussão. As estimativas chegam às dez mil vítimas, embora Pequim defenda que a repressão dos “tumultos contra-revolucionários” tenha levado à morte de duas centenas de civis.
Vejo que tem em casa uma réplica da Deusa da Democracia.
Sim, é a minha favorita.
Ajudou a erguê-la na Praça de Tiananmen?
Não, não directamente. Foi colocada pelos estudantes e eu estava lá entre eles.
Como é que um jovem, estudante de Física, se envolve num movimento pró-democracia em 1989?
Mesmo antes das manifestações de Tiananmen, as actividades no campus da universidade eram muito livres e estavam directamente relacionadas com questões sociais. Em 1988, organizei eleições livres para a União de Estudantes. Foram provavelmente as únicas eleições livres organizadas pelos estudantes na história na China comunista. Mesmo sendo eleições a esse nível, estas eram algumas das actividades que podiam acontecer naquela altura.
Eu era muito activo. Em 1988, um ano antes dos protestos, também participei no Salão da Democracia, que era uma organização estudantil, uma espécie de fórum público, criado por Wang Dan, outro líder estudantil da Universidade de Pequim. Nós procurávamos uma solução para o sistema político da China, queríamos mudanças e abertura política e económica. Em 1989, no dia 15 de Abril, morreu Hu Yaobang, que, em manifestações anteriores, tinha demonstrado simpatia pela causa estudantil e que, por isso, fora afastado da liderança do partido pela linha dura, como era o caso de Deng Xiaoping.
Foi esse evento que accionou os protestos. No dia seguinte, depositei uma coroa de flores em honra de Hu Yaobang no Monumento aos Heróis do Povo, no centro da Praça de Tiananmen. Fui provavelmente o primeiro a fazê-lo, mas seguiram-se muitos outros estudantes de diferentes universidades de Pequim. Este simples gesto de luto em homenagem a Hu Yaobang deu origem a uma discussão mais ampla. No dia 18 de Abril, lançámos uma petição com sete reivindicações.
Entre elas a liberdade e o fim da corrupção.
As mais importantes eram a liberdade de imprensa e a necessidade da divulgação dos bens e património dos funcionários do governo. Queríamos ter a possibilidade de falar livremente, de publicar sem restrições e percebemos que naquele momento essa era uma forma de mudar a China sem desafiar a governação do Partido Comunista.
Na realidade, isso recebeu amplo apoio, mesmo no seio do próprio Partido Comunista. Por essa razão, logo depois, juntaram-se estudantes de outras cidades. Mais tarde, durante as manifestações, quando Deng Xiaoping reagiu duramente com o chamado editorial de 26 de Abril em que ameaçou matar pessoas em nome da estabilidade, muitas pessoas de Pequim, que temiam a repressão e queriam proteger os estudantes, juntaram-se.
De um movimento estudantil, este evoluiu para um protesto mais generalizado, em que eu tive a sorte de participar. Na altura, eu liderava os estudantes da Universidade Tsinghua e, mais tarde, fui membro da Federação Autónoma dos Estudantes de Pequim, em representação da minha universidade. Por essa razão, depois da repressão, tornei-me no quinto homem mais procurado, segundo uma lista do governo.
E quando é que foi para a praça de forma permanente?
No dia 15 de Maio, dois dias depois de começar a greve de fome, da qual eu não fiz parte. Na realidade, eu era contra esta greve, mas queria estar ali a apoiar os estudantes que escolheram participar.
E ficou aí até 4 de Junho?
Não, a 23 de Maio fui-me embora. Depois de Li Peng declarar Lei Marcial (20 de Maio), 200 mil soldados avançaram sobre a capital, mas foram bloqueados pela população de Pequim. No dia 22 de Maio, as tropas retiraram-se e, nesse momento, deixei a Praça de Tiananmen, embora tivesse mantido sempre a minha actividade enquanto membro da liderança estudantil até ao massacre.
Quando regressou?
Um dia antes do massacre. Na manhã de 3 de Junho, ouvi na rádio que um camião carregado de armas tinha sido interceptado pelos estudantes, que o levaram à polícia. Pareceu-me uma armadilha. Apercebi-me que este era um mau sinal e que o governo estava à procura de razões para nos matar, para usar força letal. Por isso, à tarde, fui para a praça, porque acreditava que esse era o lugar mais importante e também o mais perigoso para se estar. Fiquei aí até à manhã seguinte, quando fomos expulsos pelos tanques.
Como foi o 4 de Junho?
A escalada (da violência) começou na noite de 3 de Junho, entre as 21h30 e as 22 horas. Ouvíamos as notícias e pessoas estavam a ser mortas. Inicialmente julgámos que se tratava de balas de borracha e, mesmo quando os manifestantes começaram a ser atingidos, as pessoas não acreditavam no que estava a acontecer. Mas havia tanto sangue na rua que era claro que os soldados estavam de facto a atirar e que veículos blindados e tanques levavam tudo à frente. Era como se Pequim estivesse a ser invadida.
Nós encontrávamo-nos no centro da Praça de Tiananmen, no olho da tempestade, e éramos mantidos em segurança pela população de Pequim. De todas as direcções, ouvíamos tiros. Parecia uma guerra, mas a diferença é que nós éramos simplesmente manifestantes pacíficos. Ficámos aí até de manhã, cercados pelas tropas.
Depois de Liu Xiaobo, que estava na Praça de Tiananmen, negociar com os militares, eles deixaram-nos sair. Mas enquanto debatíamos a retirada, eu vi tiros na área do Monumento, onde nos encontrávamos. Estavam a atirar sobre os altifalantes. Os soldados depois vieram para o topo do monumento fazer pressão e expulsar-nos, ou seja, primeiro ocuparam posições no topo no monumento, depois dispersaram-nos. Foi assim que deixámos a Praça de Tiananmen no dia 4 de Junho.
Quantas pessoas morreram em Pequim?
Ainda hoje não sabemos ao certo. Provavelmente nunca saberemos, porque já passou muito tempo e, todos os anos, ouço a história de alguém que morreu e que não sabíamos. Por sofrerem pressões, muitas famílias optaram por não dizer nada.
Vivia-se com medo.
Vive-se ainda hoje. Um dos estudantes do ensino secundário, Wang Nan, que morreu no lado oeste da Praça de Tiananmen, tinha então 19 anos, e foi enterrado após ser baleado. Ele ainda estava vivo, mas os militares não permitiram que fosse resgatado. Horas depois de morrer, foi enterrado num descampado à frente de uma escola secundária. Por causa de uma tempestade, o cadáver foi arrastado com dois outros corpos, que até hoje ninguém sabe a quem pertenciam. Wang Nan teve sorte em ser identificado, porque vestia umas calças militares e, como podia ser um soldado, procurou-se saber quem era. Este tipo de situações aconteceu mesmo no centro de Pequim, onde foram enterradas pessoas. Hoje não sabemos de quem eram os outros dois corpos e, passados 31 anos, a família destas pessoas provavelmente não sabe o que se passou. Esta é uma história comum.
Regressando a Tiananmen, a Praça estava equipada com estações de emissão, tendas, autocarros. Como foi organizar toda esta logística e lidar com tantos grupos de estudantes no mesmo espaço?
Foi necessário muito trabalho e muita criatividade e pudemos contar com o nosso conhecimento na área da Engenharia. A minha escola, a Universidade Tsinghua, era líder na área da Tecnologia e da Engenharia na China, e conseguimos construir uma tenda muito resistente para a estação emissora – esse foi o meu principal trabalho. Instalámos milhares de altifalantes à volta do monumento, do grande monumento. A certa altura, o volume estava tão forte que chegava a toda a praça e isso era uma espécie de milagre.
Muitas pessoas vinham ajudar-nos diariamente, engenheiros, pessoas com conhecimentos, que traziam materiais, tubos de aço, por exemplo. Foi assim que funcionou. Depois de declarada a Lei Marcial, contámos com a ajuda de pessoas de Hong Kong, que trouxeram tendas – tendas coloridas – mas antes disso, dormíamos ao ar livre, porque só a área da estação de emissão era coberta.
Mencionou há pouco que não concordava com a greve de fome, embora outros estudantes tenham optado por participar. Como é que se foi lidando com as lutas de poder entre os diferentes grupos e líderes dos estudantes?
Houve discussões muito acesas, antes e durante o processo. Na minha universidade, por exemplo, houve votação na greve de fome e decidimos não participar. Mas como os grevistas tinham o mesmo objectivo que o movimento estudantil, queríamos apoiá-los, protegê-los, ajudar no que fosse necessário e eu acabei por ir para a Praça de Tiananmen. Cada universidade teve o seu processo. A greve começou inicialmente com umas poucas centenas de estudantes da Universidade de Pequim e da Universidade Normal de Pequim, acabando por envolver dois mil alunos, e nós, estando lá, tínhamos como prioridade assegurar que havia equipamento médico suficiente e adequado. Criámos aquilo a que chamámos de área de segurança, para que ambulâncias pudessem transportar estudantes ou trazer equipamento médico a qualquer momento, mesmo estando aí milhões de pessoas, uma multidão e uma agitação. Apesar de tudo, não houve um único acidente de trânsito, porque nós gerimos tudo, tudo foi feito pelos estudantes. Foi só uma das experiências mais incríveis da minha vida, com estranhos a colaborarem entre si, a trabalharem em conjunto de forma tão eficiente e com tamanha dedicação, com a habilidade do povo chinês de se autogovernar. Não havia um governo, nós fazíamos tudo.
E não havia agentes infiltrados?
Sim, muitos. [Também] havia pessoas que vinham ter connosco a dizer que eram infiltradas, mas que estavam do nosso lado. Claro que não tínhamos forma de saber se isso era verdade ou não. Também recebemos imenso apoio de alguns soldados. Muitos vieram ter connosco a dizer que estávamos juntos. Hoje não temos forma de saber quem são, nem sabemos o que se passou com eles.
Como descreveria a praça nesse último momento que a viu, no dia 4 de Junho?
Um campo de guerra.
Em 89, o país estava do lado dos estudantes?
Isso era bastante claro. Em Pequim, o apoio era esmagador, daí terem sido destacados tantos soldados, quase um quarto de milhão dos melhores soldados para invadir Pequim. Foi uma invasão, porque eles tinham medo dessas pessoas. E não nos podemos esquecer do homem do tanque. Ele representa a população de Pequim.
Conheceu o homem do tanque?
Não, não sei se alguém alguma vez soube quem era, porque havia tantos tanques e tantas pessoas a serem mortas por esses tanques. O primeiro tanque foi bloqueado pela população de Pequim, penso que no mês de Maio, depois de imposta a Lei Marcial. O homem do tanque representa o espírito popular na luta pela liberdade e dignidade contra um governo cruel.
Ao deixar a praça regressou a casa, a Xi’an. Lê-se na comunicação social que a sua irmã o entregou às autoridades. Confirma essa informação?
Não. A minha irmã é como uma mãe para mim. Foi a primeira pessoa da minha família a ir para a universidade. Nós crescemos no seio de uma família pobre de camponeses, nos subúrbios de Xi’an e ela deu-me muito apoio. Claro que, nessa altura, ela estava preocupada e confusa, não sabia o que fazer. No processo de tentar arranjar um veículo para mim, eles [irmã e cunhado] deixaram escapar a informação onde eu estava. Lembro-me que na noite depois da polícia falar comigo, a minha irmã perguntou: podemos ir para casa? Ela pensava que podíamos simplesmente ir para casa depois disso.
Mais tarde, a minha irmã manifestou-se durante várias ocasiões e, por causa disso, ela e o marido foram alvo de muito ódio. Quando alguém da minha cela era libertado, eu pedia que se encontrassem com ela e lhe dissessem que eu não acreditava nessa mentira, que acreditava no amor dela e que sabia que tinha agido por preocupação. Tratava-se de propaganda do regime, que queria criar desconfiança entre as pessoas.
A sua família estava a par do seu papel nos protestos?
Sim, estava. Na Praça de Tiananmen, eu recebia diariamente telegramas de todos os cantos da China, as pessoas simplesmente escreviam-nos e os correios vinham entregar-nos as cartas directamente à praça. Eu andava radiante pelo facto de todos os dias conhecer novas pessoas, que viviam com a esperança de uma China melhor. Um dia, o carteiro disse-me: recebes tantas cartas, por que não envias também para a tua família? Então eu escrevi um postal que dizia: Estou aqui em Tiananmen com milhões de pessoas. Nós estamos juntos nisto. A China vai mudar, vai libertar-se da tirania. Claro que isto aterrorizou a minha família.
Passou um ano na prisão. Como foi ultrapassar isso?
Foi horrível. Claro que pelos padrões chineses, Qincheng era considerada uma prisão de alto nível, apesar de haver diferentes níveis lá dentro. Tive fome durante todo o período que passei ali, estive algemado três meses ininterruptamente e saí para apanhar ar fresco menos de dez vezes nesse ano. Eram condições muito más, apesar de mais tarde ter ficado a saber por outras pessoas que estive numa situação melhor do que estiveram outros estudantes, alguns presos noutros sítios antes ou após Qincheng – depois de condenados eram enviados para outros sítios onde foram tratados ainda pior. Nesse sentido, tive sorte, apesar de ter sido muito difícil estar privado da minha liberdade e de visitas familiares, de sujeitar-me a longas horas de interrogatórios, da lavagem cerebral e da pressão.
Porque é que que foi libertado passado um ano?
Em grande parte deveu-se ao estatuto de ‘Nação Mais Favorecida’, conferido pelos Estados Unidos. Todos os anos, por volta de Junho, os Estados Unidos tinham de decidir se esse estatuto deveria ser concedido à China, e foi assim que a China fez algumas concessões. Esta era uma vantagem muito importante para os Estados Unidos, mas isto acabou quando a China entrou para a Organização Mundial do Comércio.
Só em 1995 é que se muda para os Estados Unidos. Como foram esses anos na China?
Estive sob vigilância permanente e às vezes era interrogado. Encontrei trabalho na minha terra natal, onde era tratado como um herói pelas pessoas – pelas minhas pessoas – que eram realmente boas para mim. Muitos reconheciam-me na rua e tentavam confortar-me, porque sabiam que eu tinha estado preso. Por isso, ainda na China, apesar das dificuldades e do governo estar do lado oposto, eu sentia um profundo apoio vindo de várias pessoas de todo o país.
O meu plano era terminar Física, mas infelizmente não pude seguir esse caminho. Comecei mais tarde a minha própria empresa e fiz algum dinheiro na bolsa, que utilizei para apoiar outros estudantes que, tal como eu, tinham estado presos. Publicámos um livro com esse dinheiro, “A verdade da transição para a democracia na Europa de Leste depois de 1989” [título em inglês: The Truth of the Transition to Democracy in Eastern Europe after 1989], que foi imediatamente proibido e que levou à prisão de várias pessoas.
E hoje, nos Estados Unidos, sente-se livre?
Claro que agora me sinto livre, porque posso fazer o que quero. Por outro lado, há uma pressão contínua por parte do governo chinês através, por exemplo, da comunidade empresarial e até de organizações norte-americanas. A pandemia, por exemplo, vem demonstrar a influência do Partido Comunista e de como não se pode escapar se a China não for uma democracia – vai magoar-te, onde quer que estejas. Para mim, claro, que sou praticamente o único chinês nesta comunidade (no bairro The Ironbound), é óptimo. Gosto muito da comunidade, são boas pessoas e às vezes tenho uma sensação de segurança por essa razão, por ser o único chinês aqui.
Tem família na China. Comunica com eles?
Tento manter a distância da minha família na China e é o melhor que posso fazer agora. Claro que adorava que viessem aos Estados Unidos ou que eu pudesse visitá-los agora, mas não é realista.
Após o massacre, foi considerado o quinto homem mais procurado pelas autoridades chinesas. Que peso tem esse momento ainda hoje na sua vida?
Definiu a minha vida depois do massacre. Quando vi pela primeira vez na televisão que era o quinto homem mais procurado, fiquei chocado e simultaneamente orgulhoso, porque sabia que o que tinha feito era nobre, pelo bem do país. Sentia-me feliz por ter sido parte disso. Claro que poderíamos ter feito melhor, mas foi o que conseguimos e, para mim, foi uma surpresa, porque sempre tentei manter uma atitude discreta, como era aliás a minha forma de ser e como era a postura da minha escola. A maior parte das pessoas da Tsinghua queria funcionar enquanto grupo, organização, e não individualmente. Apesar da Tsinghua ser uma parte muito importante do movimento, poucos ficaram a conhecer os nomes dos estudantes dessa universidade, e para mim – eu que fui escolhido como representante da Tsinghua – estar na lista dos mais procurados fez com que, mais tarde, esta se tornasse a minha missão, por ser uma parte muito importante da história da China e do futuro. Tenho de cumprir este meu dever para com o público.
Como olha hoje para o que se passou em Tiananmen?
Hoje lembramo-nos de Tiananmen como uma tragédia, um massacre brutal levado a cabo por um líder insensato. Mas o que é importante lembrar é que esta foi a mais incrível manifestação pacífica na história da humanidade, que ocorreu durante algum tempo e que, claramente, mostrou que os chineses amam a liberdade e a democracia. Isto é muito importante, mesmo nos tempos negros actuais do regime comunista. Se um dia a China for uma democracia, as memórias, esperanças e sonhos de Tiananmen vão ainda ser extremamente relevantes para o futuro chinês. É uma esperança que queremos lembrar.
Há 31 anos, como julgava que seria a China agora?
Nós esperávamos que a globalização e a tecnologia mudassem a China, que houvesse uma sociedade civil, que a população fosse livre e houvesse maior abertura à semelhança, por exemplo, de Taiwan ou Hong Kong. Essa era a sociedade que eu imaginava para a China.
Até que ponto uma nova Tiananmen seria possível nos dias de hoje?
Não estou optimista. A população chinesa nunca foi tão controlada como agora. É “1984”, vai muito além da imaginação. Consegue-se monitorizar as pessoas diariamente, cada movimento, quase como se conseguissem prever os nossos pensamentos. Não há possibilidade das pessoas se organizarem e, mesmo que saibam como fazê-lo, é impossível nos dias de hoje. Não estou muito optimista em termos de mudança, isso é algo que temos de enfrentar a longo prazo. Penso que o mais importante é a existência desta firewall, que molda de forma continuada o pensamento da população chinesa, que controla as pessoas com eficácia. Isto é mesmo muito difícil de imaginar para as pessoas que estão fora da China, é monstruoso, e não se deve subestimar a grandiosidade desta ameaça.
Esteve uma vez na China desde que saiu.
Na realidade estive três vezes.
Pode entrar no país?
Não, da primeira vez, em 2007, entrei sem darem por isso e, da segunda vez, quando deram por isso, mandaram a polícia para me intimidar. Depois aperceberam-se que alguém se enganou ao permitir a minha entrada no país, falaram comigo e disseram que podia regressar para visitar a minha família. Na altura, respondi que se voltasse teria de falar sobre o que se passou em Tiananmen, teria de dar seguimento ao meu trabalho na área dos direitos humanos, liberdade e democracia na China. Eles nunca permitiriam que o fizesse. Já da terceira vez, há seis anos, vim assinalar o massacre na Praça de Tiananmen. Fui detido e enviado de regresso a São Francisco.
Vivia na altura em São Francisco?
Sim, trabalhei em São Francisco ao longo de 15 anos e considero ser aí a minha casa. Agora vivo em Newark.
Onde vive também uma expressiva parte da comunidade portuguesa.
Sim, eu tenho uma casa nas profundezas da comunidade portuguesa, no bairro The Ironbound.
Ainda sobre essas viagens à China, como é que passou a imigração? Não tem de mostrar o passaporte?
Sim, tinha estudado todas as minhas possibilidades e havia um programa de trânsito sem visto. Penso que ainda hoje é assim.
Permanece 72 horas em Pequim sem necessidade de visto.
Exacto, pode ficar 72 horas sem fazer visto. É uma espécie de lacuna e aproveitei para entrar. Foi um milagre deixarem-me passar.
Entrou com passaporte dos EUA. Isso quer dizer que abdicou da nacionalidade chinesa?
Sim, mas na realidade isso não interessa muito, porque essa questão da cidadania está em discussão na Assembleia Popular Nacional. A China defende que qualquer cidadão chinês tem de passar por um processo para rejeitar a cidadania chinesa. De outra forma, é-se considerado chinês, mesmo sendo detentor de um passaporte estrangeiro. Foi isso que alegaram quando prenderam o livreiro de Hong Kong Gui Minghai, que é cidadão sueco. Eles forçaram-no a rejeitar a cidadania sueca.
Sobre Hong Kong e a lei de segurança nacional. Como olha para este passo de Pequim?
É uma violação da promessa feita à população de Hong Kong e à comunidade internacional sobre o princípio “um país, dois sistemas”. Estão a tentar impor esta lei à população de Hong Kong sem o consenso de Hong Kong. É definitivamente algo a que temos de reagir e estou satisfeito que os Estados Unidos considerem sanções para funcionários governamentais chineses e negócios, como forma de apoiar a população de Hong Kong. Tenho uma grande admiração pela população de Hong Kong na luta que trava pela democracia, e, claro, também pelo facto de manterem viva a memória de Tiananmen nos últimos 31 anos. São uma inspiração para uma China melhor e livre.
Esteve em 2014 em Hong Kong a acompanhar a umbrela revolution. É um movimento em muito semelhante ao de Tiananmen.
Sim, as pessoas de Hong Kong estão a defender a liberdade e a dignidade, e mesmo que a situação possa parecer dramática agora, a verdade é que se continuam a lutar e isso é uma inspiração – um pouco como o homem do tanque, há 31 anos. Temos de estar ao lado de Hong Kong. Para mim, parece-me um pouco como a Alemanha do Hitler, porque ele expandia o território sem dar sequer um tiro, e a comunidade internacional tentava apaziguar a Alemanha e eventualmente isso acabou numa guerra. Numa situação destas, penso que não devíamos deixar a China fazer isto, esta violação latente de algo, de um tratado internacional, que não previa mudanças em 50 anos. Foi isso que disse Deng Xiaoping, mas claro que Deng Xiaoping não é alguém em quem se pudesse confiar. Só passaram 23 anos.
Já em Macau, foi proibida uma vigília e também outros eventos relacionados com Tiananmen no dia 4 de Junho. As autoridades justificaram com a pandemia.
Claro. Xi Jinping não tem paciência, é um homem ambicioso em termos de expansão de poder e influência, e Macau e Hong Kong são apenas os passos iniciais. Claro que ele está atento a Taiwan, ao Mar do Sul da China e outros locais, como aqueles que integram a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. A China nunca teve a ambição do domínio global, mas aspira ser arquitecta da alma humana, em todo o lado, não apenas dos chineses. E temos de encarar o que está a acontecer em Hong Kong e em Macau. O princípio “um país, dois sistemas” já morreu e Pequim tem o controlo absoluto.