Crónicas de um lugar e tempo íntimos
Antes do amanhecer, depois do pôr-do-sol, da autoria de Mu Wei (pseudónimo) consiste numa compilação de vinte e duas pequenas crónicas originalmente escritas em chinês e traduzidas para português por J.W. (pseudónimo), uma edição bilingue da Associação de Estórias de Macau e da Musical Stone Publishing Ltd, editada em dezembro de 2019. Mu Wei escreve como colunista para o Macao Daily desde 2015. O livro é a compilação de algumas das suas peças publicadas anteriormente nas quais, segundo ela, “geralmente regista impressões sobre o quotidiano e o seu estilo de vida”. J. W. é um poeta de Macau, com trabalhos igualmente publicados no Macao Daily e na Voice & Verse Poetry Magazine de Hong Kong. Sabendo que J. W. era proficiente em português e interessado pela tradução literária, Mu Wei convidou-o para traduzir os seus trabalhos, na expetativa, de acordo com as suas palavras, “de que isso ajudasse a partilhar com os leitores portugueses algumas das ideias e da cultura de Macau”.
Para a autora, escrever sobre um lugar surge como motivo para nos fazer olhar de novo e não apenas tomar como garantidos os objetos e as atividades que acontecem ao nosso redor. Nos seus textos, os espaços são vividos e, nesse decurso, são simultaneamente percebidos e imaginados num processo iterativo. Perpassam nestas crónicas diversos locais exteriores e interiores da cidade comum, da rotina, dos modos de vida e também de outros lugares visitados na Ásia que são pretexto para um potencial reflexivo; focada na observação direta do local, procura uma compreensão detalhada (pode-se dizer uma “re-visão”) e esse processo de “re-visão” maximiza as oportunidades de nos vermos no espelho, como parte da narrativa do lugar. Os textos de Mu Wei estão ancorados no espaço de onde despontam e falam-nos dos lugares como experiências subjetivas. A partir do espaço objetivo, do espaço físico da experiência diária (cafés, bares, viagens…), dão ao leitor olhos para ver, um ponto de vista a partir do qual se obtém a sensação de um local, gerando motivos de empatia e identificação.
Trata-se de uma escrita cosmopolita, inteligente e culta (pontuada por alusões que vão dos U2 a Doraemon, de Heráclito e Séneca a Ishiguro, Thoreau, Murakami, Skakespeare, Camus, Eileen Chang…), inscrita no aqui e agora do lugar em que é vivida, que lida também com objetos, situações e ideias, com factos que não existem sem as palavras (encontros, conversas, memórias, sentimentos). Através de metáforas subtis, sinestesias e associações de imagens quase cinematográficas (por vezes, requintadamente irónicas), Mu Wei estrutura sentimentos e leva-nos a descobrir que coisas consideradas privadas, idiossincráticas e até isolantes são de facto características emergentes, conectivas e dominantes. Perpassa esta escrita uma certa melancolia interessada nos paradoxos, ironias e ambivalências inerentes à cultura atual e um questionamento de cariz existencial (veja-se a figuração da morte no texto “ Rolo de macarrão de arroz acompanhado de shaomai e vinho branco”, um exemplo entre outros). A consciência reflexiva da escritora cristaliza uma espécie de continuidade entre a observação do real, o representacional e o abstrato; por exemplo, uma camisa preta e uma camisa branca são pretexto para uma reflexão sobre fiabilidade das memórias ou uma taça de arroz, sobre a permanência daquilo que é estruturante da nossa existência. O exercício da corrida é o ponto de partida para uma interrogação sobre a “forma da felicidade”, o da escrita sobre a possibilidade de inscrição do indivíduo num mapa atemporal que exceda o território que descreve, o da pesca sobre a beleza da monotonia, o uso das redes sociais serve para o questionamento das visões utópicas ou distópicas que construímos para nós próprios e para os demais, entre tantos outros temas que moldam uma conceção contemporânea do que é a vida da cidade e de como as pessoas podem ou não lidar com isso.
É de referir ainda que, apesar de lidar com sentimentos e emoções, esta é uma escrita de onde o pathos está ausente, pouco adjetivada – há como que um distanciamento elegante entre o real vivido e o percecionado e é a sobreposição desses planos que, nos textos de Mu Wei, nos dá o “contorno visível” das coisas que importam e que cobrimos “com papel fino em branco” (“Não me importa”), o nosso Norfolk pessoal onde podemos “encontrar coisas perdidas” (numa referência ao romance de Ishiguro, Nunca me deixes).
Duas notas finais para destacar a excelente escolha do título Antes do amanhecer, depois do pôr-do-sol, que remete com finura para o nexo entre um tempo e um espaço indefinidos, cíclicos, simultaneamente de fim e recomeço, de silêncio meditativo e de conexão dos seres humanos com a sua própria contingência e finitude. No caminho contrário ao deste silêncio significativo, entre o que é e o que será, passamos pela possibilidade da linguagem a comunicar o que aparenta ser pessoal e acaba por assentar na base sobre a qual uma identidade é inconscientemente determinada através de visões e suposições em comum, e através do efeito comum que isso implica – e esse é o espaço da arte. A nota derradeira é para a notável tradução de J.W., por um lado pelo desafio que terá constituído, por outro, por possibilitar o acesso a uma autora que de outra forma nos passaria despercebida e, finalmente, pela qualidade do português escorreito, pelo vocabulário diversificado e pelo equilíbrio a organização frásica ao longo de todo o livro.
時間與空間交融的專欄
《日出之前,日落之後》收納了《澳門日報》專欄作者木維的二十二篇文章,並由澳門詩人J.W.翻譯成葡文,於2019年12月以雙語的形式由澳門故事協會出版。木維自2015年以來一直在《澳門日報》—“新園地"撰寫文章,《日》是記錄她日常生活和方式的專欄作品。譯者J.W.為澳門詩人夏簷,其詩作曾在《澳門日報》和香港的詩歌雜誌《聲韻詩刊》發表。木維得知J.W. 精通葡萄牙語,並對文學翻譯感興趣,遂邀請他翻譯其作品,J.W. 認為:“這將有助於與葡萄牙讀者分享澳門的文化和當地人的想法"。作者筆下的地方,能引領讀者以有別於日常的視角及態度去觀察。她的筆觸遊走於其曾經歷的時空,在日復日的軌跡上,滿載讀者的共鳴與想像空間,遍佈這座小城的每個角落。書中文章的題材,包括作者的日常瑣事、生活方式,以至其在亞洲國家旅行的地方。作者通過對身邊事物的觀察,尋求對生活的理解,重新詮釋生活。文中敘述的事情,猶如把讀者帶到鏡子前,使其置身於鏡中影像。木維著墨的不同空間,如日常光顧的咖啡店、酒吧、旅行的地方等,都能與讀者分享其個人的看法,讓讀者產生共鳴。
《日》像是結合不同元素及文化的大都會,文中提及的人物和事物十分廣泛,例如有歌手組合U2、日本卡通人物多啦A夢、古代哲學家赫拉克利特及塞內卡、作家石黑一雄、梭羅、村上春樹、莎翁、卡繆、張愛玲等。作者通過文字記錄當下,以及一些難以寄予文字的事物,諸如身處的環境、回憶、情感等。木維通過隱喻、聯覺及近乎電影術的影像,引導讀者發現原來個人的、獨特的情感,亦可以與周遭的事物構成獨特的聯繫。文章偶爾帶有莫名的憂鬱感,字裡行間亦滲透了不少對文化及存在困惑的諷刺、悖論及矛盾(如“燒賣腸粉與白葡萄酒”一文中對死亡的詮釋)。木維對周遭事物的反思覺察理清了真實、具體與抽象不可劃分的串聯關係。例如,“黑色襯衣"和“白色襯衣” 作為回憶的寄託;還有借用“白飯"來說明我們能賴以生存的因由。另有一文以跑步帶出何謂幸福的問題,為了捕捉單調的美,思緒可以跳出框框,並遊走於無邊無際的空間。木維亦在文章裡讓讀者反思對烏托邦和反烏托邦的概念,對現今城巿生活提出質疑,並著處身其中的人們思考該如何自處。
《日》儘管著墨於情感和思緒,但甚少刻意煽動憂傷的情感。作者很少直接用到形容詞,卻會在真實的生活和感知的事物之間刻劃了優美的距離,而這些事實與事物的重疊,令本來抽象的事情有了若隱若現的輪廓,猶如“用輕薄的白紙遮掩"(見“無所謂"),並可以在諾福克群裡找到(參考石黑一雄的《別讓我走》)。
還有兩個值得一提的地方。書名《日出之前,日落之後》取得相當好,它充分地表達出時間和空間的聯繫、無間斷的開始和結束、予人冥想的寧靜,以及人與人之間的遇合及限制。在這份寧靜裡,我們探索現實與未來,通過文字,作者與讀者一起探索觀點和假想,於不知不覺間認識到自我,這就是文字藝術賦予的空間。最後值得一讚的是譯者J.W.引人注目的翻譯,以優美的葡文藻詞,平衡整本書中的組織,使葡文讀者能接觸到一位不為人所知的中文作者。
A versão portuguesa desta recensão foi publicada a 16 de Março no jornal Ponto Final
Foto de destaque: Catarina Domingues (EXTRAMUROS)
Sobre a obra
Título
Antes do amanhecer, depois do pôr do sol
Autor
Mu Wei
Ano
2019
Edição
Associação de Estórias de Macau e Musical Stone Publishing Ltd