O adeus a “uma alma livre e inútil”
A Universidade de Fudan, uma das mais prestigiadas da China, anunciou em Dezembro passado a retirada dos conceitos de “liberdade de pensamento” e “integridade académica” dos princípios básicos da instituição. Além disso, os estatutos que até então entregavam o controlo da universidade aos “professores e estudantes” sob “gestão democrática” foram alterados para destacar “a liderança do Partido Comunista Chinês sob a orientação do Marxismo e Socialismo” e a garantia de “implementar a direcção, princípios e política do Partido”.
A decisão da universidade pública, considerada das mais liberais da China, poderia ser encarada como um exagero de um burocrata desejoso de agradar aos seus superiores. Afinal, mesmo o chefe de redacção do diário estatal Global Times, Hu Xijin, criticou no Weibo – o equivalente chinês do Twitter – as mudanças como “insensatas” e resultado do “politicamente correcto, sublinhando, curiosamente, que os conceitos de democracia e liberdade fazem parte dos valores do “socialismo com características chinesas”.
Mas a iniciativa não veio da universidade, mas sim do Ministério chinês da Educação, que em 2010 ordenou a 26 universidades que alterassem os seus estatutos, supostamente para melhorar a gestão. Aliás, além de Fudan, o Ministério alterou também de uma assentada os estatutos de duas outras universidades: a Universidade Normal de Shaanxi e a Universidade de Nanjing. Esta última inclui mesmo uma referência ao “pensamento de Xi Jinping” nos seus novos estatutos.
Sun Peidong, professor de história na Universidade de Fudan, disse no Twitter – que está banido na China continental – que a decisão lembra a campanha de “lealdade e honestidade” nas universidades chinesas entre 1951 e 1952. Uma das muitas violentas campanhas lançadas por Mao Zedong, que iria culminar com milhões de mortes durante a Revolução Cultural, de 1966 a 1976.
Fahrenheit 451
Visto de uma forma mais abrangente, a remoção reflecte uma crescente pressão do Partido Comunista sobre o mundo académico para obedecer ao que o regime considera os mais elevados interesses do país. Afinal, o próprio Presidente chinês Xi Jinping tem encorajado de forma repetida a remoção do que considera ser conteúdo com “influências ocidentais” dos manuais utilizados no sistema público de educação.
Num caso extremo, em Outubro passado, o Ministério chinês da Educação ordenou a todas as bibliotecas, incluindo nas escolas públicas, que identificassem e se livrassem de livros, periódicos e outro tipo de publicações que constem da “lista negra” do regime comunista.
O resultado, que chegou às redes sociais chinesas em Dezembro, foi uma queima de livros feita em plena praça pública por uma biblioteca da província de Gansu, no noroeste da China. “Nem durante a Revolução Cultural fizemos isto”, escreveu no Weibo o advogado Chen Youxi, que sublinhou que mesmo nessa altura os livros considerados “de direita” eram preservados nas bibliotecas, ainda que longe da vista
As imagens vindas de Gansu lembram sobretudo as infames queimas de livros lançadas pelo regime Nazi alemão após chegar ao poder em 1933. Uma comparação tão pouco lisonjeira que aparentemente terá levado o Ministério da Educação a suspender a destruição de mais materiais proibidos.
Ligações perigosas
O caso da Universidade de Fudan reflecte a promoção de uma visão pró-Partido Comunista da história e política chinesas. Algo que, por exemplo, já levou universidades de vários países, incluindo nos Estados Unidos, Canadá e Bélgica, a encerrar delegações do Instituto Confúcio. A organização, tutelada pelo Ministério chinês da Educação, tem sido também acusada de servir como base para um controlo apertado dos estudantes chineses no estrangeiro.
Mas a decisão da Universidade de Fudan levanta questões sobre as crescentes ligações directas entre instituições chinesas e estrangeiras de ensino superior, incluindo a criação de campus de universidades estrangeiras na China.
São já muitas as parcerias deste género, várias das quais se viram já envolvidas em casos de alegada censura ou repressão da liberdade académica.
A própria Universidade de Fudan assinou em Maio passado um acordo de cooperação com a Universidade de Coimbra, que abre portas ao intercâmbio de alunos, professores e investigadores. Contactada pelo EXTRAMUROS, a instituição portuguesa preferiu não fazer qualquer comentário.
Em Janeiro passado a Universidade de Fudan anunciou mesmo planos para o primeiro campus de uma universidade chinesa no estrangeiro, em Budapeste, capital da Hungria.
‘Yes men’
Para o regime chinês, o perigo que advém de reprimir a liberdade académica é uma cultura de ‘yes men’ que no passado levou a China a tragédias como a Grande Fome entre 1959 e 1961. Segundo académicos, a principal razão para a morte de dezenas de milhões de pessoas foi a ambição de governantes locais, que inflacionaram as estatísticas da produção local de alimentos para mostrar serviço, levando a que o Partido Comunista requisitasse cada vez mais, deixando a população sem o que comer.
Um exemplo óbvio deste perigo é a surpresa que causou em Pequim a vitória retumbante do campo pró-democrata nas eleições para os conselheiros distritais em Hong Kong, em Novembro passado.
A imprensa estatal estava de tal forma segura que escreveu de véspera notícias a explicar como o triunfo do lado pró-governamental era a prova de que uma “minoria silenciosa” estava com o Partido Comunista e contra os “violentos radicais”.
A decepção levou mesmo à queda do homem forte do regime chinês em Hong Kong, Wang Zhimin, substituído no início de Janeiro.
Sonho lá fora
Vários antigos alunos da instituição disseram no Weibo que a alteração dos estatutos representa o fim da tradição liberal da Universidade de Fudan, condensada no lema “uma alma livre e inútil”. Mas mesmo de um ponto de vista utilitário, não é difícil de perceber o impacto negativo que a decisão da Universidade de Fudan pode ter na qualidade do ensino que é ministrado.
Um dia após a mudança ter sido tornada pública, dezenas de estudantes reuniram-se numa cantina do campus de Xangai para entoar, ao som de uma harmónica, o hino da instituição, que ironicamente celebra a “independência académica” e o “pensamento livre” sem influências políticas ou ideológicas.
Um curto vídeo da manifestação – algo raro na China –, que durou menos de 20 minutos e dispersou de forma pacífica, circulou nas redes sociais chineses antes de ser removido pela máquina estatal de censura.
Tal como demonstra o caso dos estudantes marxistas detidos em Shenzhen por apoiarem greves de trabalhadores, o protesto na Universidade de Fudan demonstra que os jovens chineses estão longe de ser um grupo homogéneo e fácil de manipular pela propaganda.
Ainda assim, esta ‘flash-mob’ não é uma simples demonstração de um desejo de maior liberdade, algo que o Ocidente tem há décadas procurado vislumbrar na China, desde os tempos do massacre de Tian’anmen.
Para a maioria dos estudantes universitários chineses, a grande ambição é usar um diploma local para conseguir continuar os estudos numa prestigiada instituição ocidental. O apertar da repressão, que representa obviamente um deteriorar da qualidade do ensino, representa um risco para esse sonho.