“Se Taiwan aprovou, porque não na China?”
Um anúncio publicitário e a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em Taiwan, pôs os chineses a debater a aprovação de uma lei semelhante no país. Mas activistas LGBT contactados pelo EXTRAMUROS dizem que nem uma campanha que mobilizou centenas de milhares vai conseguir mudar a lei vigente na RPC.
Uma campanha galvanizou a comunidade LGBT chinesa, que conseguiu fazer da legalização do casamento homossexual uma das principais sugestões para uma revisão legislativa. Mas tanto um activista como um académico admitem que a proposta será inevitavelmente rejeitada.
A Comissão de Assuntos Legislativos recebeu mais de 237 mil sugestões através da Internet e 5.600 cartas, todas sobre o casamento homossexual, revelou a 20 de Dezembro o porta-voz Yue Zhongming.
A comissão, que faz parte do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional (APN), o parlamento chinês, tinha pedido em Novembro sugestões aos chineses sobre possíveis revisões ao Código Civil.
Vários grupos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgéneros) viram no pedido uma “boa oportunidade”, diz Yang Yi.
O membro da organização não-governamental LGBT Rights Advocacy China enviou um e-mail à comissão da APN para pedir que o casamento entre pessoas do mesmo sexo fosse incluído na agenda.
Foi depois lançada uma campanha para mobilizar não apenas a comunidade LGBT chinesa, mas também “os aliados”, para “exprimir a nossa reivindicação”, explica Yang Yi ao EXTRAMUROS. O activista acredita que este movimento foi responsável por “90 por cento ou mesmo 95 por cento” dos comentários.
Só o facto de a comissão parlamentar ter sido obrigada a mencionar o tema “já nos deixa muito felizes”, diz. Afinal, em Agosto Zang Tiewei, porta-voz da mesma comissão, tinha defendido que limitar o casamento a casais heterossexuais “está de acordo às tradições históricas e culturais” da China.
Longe da vista
Ainda assim, Yang Yi admite que são “obviamente muito baixas” as probabilidades desta campanha levar à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Guo Xiaofei, professor na Universidade de Ciências Políticas e Direito da China, concorda: “Trata-se sobretudo de um processo de diálogo e activismo. A função destas sugestões é o diálogo entre os oficiais governamentais e o povo”.
O académico, que em 2018 lançou o primeiro curso de direito LGBT na China, sublinhou em entrevista ao EXTRAMUROS que “não há nenhum país no mundo que ao mesmo tempo proíba a exibição de filmes LGBT mas permita o casamento homossexual”.
Em 2018 o regulador chinês dos média proibiu a transmissão na Internet de documentários, filmes ou animação com conteúdo homossexual, que descreveu como “anormal”. Em Março a China cortou três minutos do filme “Bohemian Rhapsody”, sobre o vocalista bissexual do grupo britânico Queen, Freddie Mercury.
Mas a aplicação das novas regras tem sido incoerente. O primeiro beijo entre duas personagens do mesmo sexo na série “Star Wars”, no filme “The Rise of Skywalker”, que estreou na China continental no mês passado, escapou à censura.
E na semana passada um anúncio da Tmall, a plataforma de comércio electrónico do gigante chinês Alibaba, mostrou um casal gay a visitar a família durante o Ano Novo Lunar. A comunidade LGBT elogiou o anúncio, mas avisou que é demasiado cedo para falar de progresso.
Menos espaço
“Francamente, está a tornar-se cada vez mais raro ver imagens da comunidade LGBT nas notícias, na televisão, nos meios culturais”, lamenta Yang Yi. “Isso faz com que seja mais difícil para o público em geral saber quem somos, como é a nossa vida e as nossas necessidades”, diz o activista.
A repressão chegou mesmo, ironicamente, às plataformas de comércio electrónico do grupo Alibaba, que em Abril passado começou a remover produtos com referência à comunidade LGBT, alegando que continham “obscenidades ou pornografia”.
A mesma campanha anti-pornografia levou ao fim da Rela, a principal rede social chinesa para lésbicas, e à remoção de milhões de obras de literatura LGBT em chinês disponibilizadas na Internet.
A literatura erótica tem o sido o principal alvo dessa campanha, diz Guo Xiaofei. Mas o académico admite que “é possível questionar se a literatura erótica de cariz homossexual não tem sido punida de forma mais severa”.
Além disso, no ano passado dois grupos de defesa dos direitos LGBT sediados em Guangzhou foram encerrados por serem “organizações ilegais”, enquanto muitas outras têm tido dificuldades em se registar junto do governo.
Os direitos da comunidade LGBT “não são provavelmente o tema mais sensível na China”, diz Yang Yi, mas os activistas não têm escapado ao que chama de “contracção do espaço disponível para a sociedade civil”.
“Se não há respeito pelos direitos humanos, é difícil falar dos direitos LGBT”, acrescenta o membro da LGBT Rights Advocacy China, também sediada em Guangzhou. A repressão tem restringido as actividades públicas do grupo, admite Yang Yi.
Sinais de fumo
A imprensa ocidental tem regularmente apontado para sinais de uma maior abertura ou tolerância por parte das autoridades chinesas para com as relações entre pessoas do mesmo sexo, mas isso não reflecte a realidade, diz Guo Xiaofei.
O académico dá como exemplo as notícias, em Agosto passado, sobre dois parceiros homossexuais que se conseguiram registar como guardiões legais um do outro – o primeiro caso do género na capital chinesa, Pequim. O sistema de guardião legal já existia e só agora começou a ser usado pela comunidade LGBT, sublinha Guo Xiaofei.
Ainda assim, Yang Yi acredita que esta possibilidade poderá resolver em parte a falta de protecção legal dos casais homossexuais na China. “Há muitos casos na nossa comunidade em que, porque não há casamento,” explica o activista, não foi possível nomear o parceiro como beneficiário de um testamento ou passar uma procuração em caso de doença.
Segundo a LGBT Rights Advocacy China, há pelo menos uma dezena de outros casais homossexuais que já iniciaram o processo para obter este registo noutras cidades chinesas, incluindo Xangai, Guangzhou e Chengdu.
Yang Yi diz que também a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em Taiwan serviu de “enorme motivação” para a comunidade LGBT na China continental. “A nossa cultura e história é muito semelhante por isso é possível perguntar: Se Taiwan aprovou, porque não na China?”
Guo Xiaofei é menos optimista. O académico diz que a oposição ao casamento homossexual na China vem não tanto do governo, mas sobretudo de grupos socialmente mais conservadores. Esses grupos poderão tornar-se mais visíveis caso a reivindicação pela legalização ganhe maior destaque público, diz.