China e a Covid-19: do luto à vanglória
O Partido Comunista Chinês conseguiu dominar a raiva criada pelas falhas no controlo da covid-19 e tecer uma história de vitória para o regime, que tem aproveitado o fracasso do Ocidente face à pandemia para exacerbar o nacionalismo doméstico, dizem académicos.
Foi com crisântemos brancos na lapela – um símbolo de luto – que o presidente chinês Xi Jinping e os outros membros do Comité Permanente do Politburo, o mais poderoso órgão do Partido Comunista Chinês, assinalaram a 4 de Abril de 2020 “um dia nacional de luto pelos mártires” da luta contra o novo coronavírus, responsável pela Covid-19.
Um dia que, segundo Zhang Chenchen, professora da Queen’s University Belfast, na Irlanda do Norte, representou a transformação da raiva por mais de 4.600 mortes oficialmente atribuídas à pandemia num discurso nacionalista de vitória contra a pandemia. “Em Janeiro e Fevereiro a China viveu não apenas uma crise de saúde pública, mas também uma crise política e um período de trauma marcado por sentimentos de traição”, disse a académica numa palestra online a 20 de Novembro.
Uma crise que começou com as falhas na divulgação de informação sobre a Covid-19, disse ao EXTRAMUROS Yang Yifan. “A população chinesa só soube no final de Janeiro do perigo que o coronavírus representava”, lamenta o investigador da East China Normal University, em Xangai.
O académico, que escreveu um artigo sobre o discurso oficial chinês durante a pandemia, culpa a prioridade dada na China à manutenção da estabilidade social. “As autoridades locais em particular tinham de encontrar um equilíbrio entre avisar a população em geral do perigo e manter a estabilidade”, acrescenta.
Para lidar com o problema, o discurso oficial do Partido Comunista Chinês procurou “minimizar o atraso na resposta e destacar o trabalho árduo do pessoal médico, dos voluntários e dos dirigentes governamentais, para reforçar a confiança do público no governo”, refere Yang Yifan.
Mas o mal estava feito e perdura: “A opinião pública sobre a transparência e acesso à informação no interior da China tem vindo a piorar, sobretudo depois da morte de Li Wenliang”, nota o investigador.
O médico do Hospital Central de Wuhan – cidade onde foi pela primeira vez detectado o coronavírus – foi acusado pela polícia de espalhar rumores por avisar colegas sobre a existência de casos de uma nova doença e acabou por falecer devido à Covid-19.
Memória selectiva
O luto “quase universal” por Li Wenliang na noite da sua morte “rapidamente se transformou em reivindicações por maior liberdade de expressão antes de tudo ter sido censurado”, afirma Zhang Chenchen. Afinal, sublinha a investigadora, “o luto em demasia pode ser perigoso e ameaçador aos olhos das autoridades”. O Partido Comunista sentiu a necessidade de “monopolizar onde, como e quando é que se pode fazer o luto”, acrescenta.
Zhang Chenchen dá como exemplo dois vídeos que se tornaram virais nas redes sociais chinesas no pico do surto em Wuhan. Um deles, no qual uma filha desolada corre desesperadamente atrás do carro que transporta o corpo da mãe que tinha falecido devido à Covid-19, foi censurado. O outro, de uma enfermeira a fazer o mesmo pelo marido, director de um hospital, continuou a circular porque “era um dirigente médico de alto nível que podia ser descrito como um herói ou mesmo um mártir da luta da nação contra o coronavírus”, defende a académica.
Para a professora da Queen’s University Belfast, o dia de luto nacional a 4 de Abril “representa esta consolidação do luto em torno de uma série de valores colectivos e da manutenção do status quo”. Ou seja, as autoridades conseguiram “superar o passado sem reconhecer as injustiças ou implementar qualquer mudança política”, lamentou Zhang Chenchen.
Mas nem todos aceitaram aquilo que Yang Yifang chamou de “memória selectiva e esquecimento parcial”.
Em Junho, Hua Chunying, porta-voz do Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros, levantou polémica ao defender que a história da luta contra a Covid-19 deveria ser feita com “a adequada memória colectiva”.
Uma expressão que foi alvo de troça nas redes sociais chinesas e que, apesar da censura, continua ainda hoje a ser usada para republicar histórias do pico da pandemia, lembra Zhang Chenchen.
Formas mais organizadas de “activismo memorial” incluem uma lista, recolhida de forma colectiva, de mortes por Covid-19 que não terão sido incluídas nos números oficiais, e também Terminus2049, um arquivo digital de artigos censurados. “Os voluntários por trás do projecto” desapareceram e terão sido presos nos últimos meses, lamenta Zhang Chenchen.
Nacionalismo atiçado
A 9 de Abril, poucos dias depois do simbólico dia de luto nacional, foi levantado o confinamento que durante meses paralisou a cidade de Wuhan. À medida que a China ia controlando a pandemia, o discurso oficial do Partido Comunista mudou de alvo e de conteúdo, considera Yang Yifan.
O regime chinês passou também a falar para o exterior, descrevendo-se como “um agente cooperante e responsável na governação mundial em matéria de saúde”, diz o investigador. Mas no interior do país a polarização subiu de tom.
“Os chineses começaram a exprimir um crescente nacionalismo defensivo, reiterando que a China fez um bom trabalho e não deve ser culpada” pelo novo coronavírus, disse ao EXTRAMUROS Zhao Xiaoyu, investigador do Departamento de Ciências Políticas da Universidade Nacional de Singapura, que escreveu um artigo a analisar o discurso nacionalista dos cibernautas chineses durante a pandemia. Pandemia essa que já tinha “intensificado a hostilidade internacional e tornado o discurso cada vez mais nacionalista”, lembra Zhang Chenchen. “Tornou-se a China contra ‘o outro’, em especial o Ocidente”, diz.
Um discurso que nas redes sociais descambou para a xenofobia, refere Zhao Xiaoyu, através da oposição à entrada não apenas de estrangeiros, mas até de chineses radicados no estrangeiro. Este “imaginário de rivalidade geopolítica internacional distorceu a narrativa da pandemia na China”, lamenta Zhang Chenchen. A explicação oficial “era que nós [China] estamos bem porque valorizamos a vida humana enquanto eles [o Ocidente] valorizam a liberdade”, diz a professora de política e relações internacionais. Uma evolução reflectida na reacção ao “Diário de Wuhan”, no qual a escritora chinesa Fang Fang descreve a vida na cidade durante o confinamento. O diário, que começou a ser publicado na rede social chinesa Weibo a 25 de Janeiro, foi “razoavelmente bem recebido em Fevereiro”, diz Zhang Chenchen. Mas quando chegou Abril, “o crescente nacionalismo popular entendia qualquer crítica com tendo como objectivo ajudar as forças anti-China no estrangeiro”, refere a académica.
A maioria dos cibernautas chineses acredita que há no Ocidente “um preconceito anti-China” e que as críticas à forma como o país lidou com a pandemia são fruto desse sentimento, confirma Zhao Xiaoyu.
O regime comunista aproveitou a comparação entre “o sucesso da China e o falhanço dos países ocidentais” no controlo da Covid-19 para encorajar os chineses a “aceitar a história como lhes é contada e atribuir o sucesso à liderança do partido no poder”, diz Yang Yifan.
Um método que resultou, observa Zhao Xiaoyu, com os níveis de aprovação das autoridades a subir, sobretudo no que toca ao Governo Central liderado por Xi Jinping.
Mas Yang Yifan lembra que inquéritos de opinião realizados nos últimos meses revelam que a percentagem de pessoas em países ocidentais com uma opinião negativa da China tem subido. Menosprezar a luta do resto do mundo contra a pandemia, avisa o investigador, “poderá apenas causar uma resposta ainda mais negativa por parte do Ocidente”.