“Presa” em Wuhan por amor
Cecilia Yang Xi e Liu Ting estão há mais de um mês fechadas em casa, em Wuhan, capital da província chinesa de Hubei e foco da epidemia do Covid-19. O casal, que gere um café dedicado aos amantes dos jogos de tabuleiro, falou ao EXTRAMUROS sobre o que têm sido estes dias de isolamento e como é viver uma relação que não é reconhecida na China. Liu, natural de Taiwan, recusou a oferta de repatriamento das autoridades de Taipé e ficou em Wuhan, por amor.
“Podemos falar a qualquer hora. Não temos propriamente muito que fazer”, diz ao EXTRAMUROS Cecilia Yang Xi com um sorriso. Há mais de um mês que Cecilia e a esposa, Liu Ting, estão fechadas em casa em Wuhan, cidade do centro da China onde deflagrou o surto de coronavírus que continua a fazer manchetes em todo o mundo.
Ao contrário da esmagadora maioria dos residentes na capital da província de Hubei, Liu teve a oportunidade escapar à quarentena e abandonar a cidade. Mas a jovem natural de Taiwan recusou a oferta de repatriamento das autoridades de Taipé e ficou em Wuhan, por amor.
O casal conheceu-se a 25 de Abril de 2018, através do LesPark, uma aplicação de encontros para a comunidade lésbica criada por uma empresa chinesa, que permite fazer ‘livestream’. “Foi a minha primeira transmissão nesse dia e ela veio espreitar”, recorda Cecilia.
“Conversámos a noite toda até de madrugada, com o sentimento de que as nossas almas já se conheciam. Nem sequer me passou pela cabeça o problema da distância”, acrescenta a jovem.
Quando Cecilia foi em Setembro de 2018 a Taiwan para conhecer Liu pessoalmente, o casal aproveitou para registar a sua união de facto na cidade de Kaohsiung, no sul da ilha. “Quando estávamos a ir de carro para Kaoshiung para fazer o registo, estávamos mesmo contentes, mesmo. Vimos uma na outra aquela determinação que torna as pessoas felizes”, recorda a chinesa.
Em Abril de 2019, um ano depois de falarem pela primeira vez, o casal decidiu juntar os trapinhos em Wuhan. “Eu só podia ficar em Taiwan no máximo 15 dias, enquanto ela podia viver na China continental durante cinco anos e depois podia ainda renovar o visto. Por isso ela escolheu vir viver comigo”, explica Cecilia.
“Fiquei muito comovida por ela ter abandonado a cidade em que viveu durante 28 anos para se mudar para Wuhan, especialmente porque nem toda a gente teria essa coragem”, sublinha a jovem.
Amor e ausências
No mês seguinte, Taiwan tornou-se o primeiro país asiático a legalizar a união entre pessoas do mesmo sexo. A mil quilómetros de distância, Cecilia e Liu só puderam acompanhar com inveja as manifestações de júbilo nas ruas da ilha.
“Não podemos casar porque em Taiwan a lei da união entre pessoas do mesmo sexo requer que o casamento seja reconhecido por ambos os países. Muitos casamentos ‘internacionais’ como o meu e da Liu Ting não são por agora permitidos”, lamenta Cecilia.
Um casal homossexual em que um dos parceiros é natural de Macau – onde não é possível o casamento entre pessoas do mesmo sexo – apresentou já um recurso nos tribunais de Taiwan contra este requerimento.
O máximo que Cecilia e Liu puderam fazer foi juntar-se a mais três casais do mesmo sexo numa cerimónia simbólica de casamento celebrada em Wuhan a 4 de Janeiro de 2019. Os pais de Cecilia não estiveram presentes, uma ausência que ela tenta desvalorizar. “Eles vão sempre passar os invernos a Hainan”, ilha tropical do sul da China, explica.
Mas a jovem admite que a oposição da família começou logo que ela regressou de Taiwan e lhes mostrou o documento a comprovar a união civil. “Eles” – começa Cecilia, antes de fazer uma longa pausa, enquanto procura a palavra certa – “desmoronaram-se. A minha mãe só chorava, sem parar. O meu pai estava furioso”.
Ela decidiu “fazer vista grossa” e diz que actualmente a situação está “muito melhor”. “O meu pai, entretanto, apaixonou-se pela Liu Ting. Cada vez que liga, ele avisa que, se uma de nós ficar doente, mete-se num carro e vem-nos salvar, nem que tenha de furar as barreiras policiais”, revela Cecilia.
Quarentena blues
O primeiro sinal de que algo estava errado surgiu a meio de Dezembro, no café que o casal gere em Wuhan, dedicado aos amantes dos jogos de tabuleiro. “Um dos jogadores conhecia um médico no Wuhan Union Hospital, que lhe disse que havia um vírus semelhante ao do SARS [sigla inglesa da Síndrome Respiratória Aguda Grave] que se tinha começado a propagar”, recorda Cecilia.
Na altura, admite, “não prestámos muita atenção e assumimos que em condições normais o Governo diria qualquer coisa, não é?” Segundo o jornal Caixin, peritos chineses descobriram já em Dezembro que o novo coronavírus era de facto semelhante ao da SARS, mas foram silenciados pelas autoridades, que os obrigaram também a destruir todas as amostras.
Após o surto se tornar público e Wuhan se ter transformado numa cidade em estado de quarentena, o Governo de Taiwan decidiu enviar um avião para evacuar os seus cidadãos. “Eu disse-lhe que ela devia ir, porque mesmo que por azar ela fosse infectada, em Taiwan teria acesso a melhores cuidados médicos e não haveria falta de camas, como aqui”, diz Cecilia.
Liu recusou e ficou em Wuhan, cujos bairros continuam isolados. Para passar o tempo, o casal vê séries de televisão e programas de entretenimento, canta, experimenta novas receitas e fala pela Internet com alguns dos clientes regulares do café.
Cecilia sofreu anteriormente de depressão e admite que de vez em quando a clausura a faz chorar. “O tempo passado fechadas em casa tem-se arrastado e todos os dias há notícias arrasadoras. É bastante deprimente”, confessa a jovem.
Ainda assim, a jovem acredita que “a situação em Wuhan está a melhorar” e tenta ser optimista. “Tendo a Liu Ting ao meu lado, como não ser feliz? Amamo-nos uma à outra, por isso não temos medo de nada”, sublinha Cecilia.