“Hoje Xinjiang, amanhã Hong Kong”
“Os crimes violentos são um ‘vírus’ que ameaça a sociedade de Hong Kong e um inimigo comum que representa um flagelo para toda a humanidade”. Foi assim que no passado dia 19 de Novembro o jornal estatal chinês Diário do Povo se referiu aos protestos que há mais de cinco meses afectam a cidade. Qualquer semelhança entre esta metáfora do movimento pró-democracia de Hong Kong como uma doença e a descrição do Islão como “um tumor maligno incurável” utilizada pelo Partido Comunista Chinês na província de Xinjiang, no nordeste do país, não tem nada de coincidência.
No que toca aos protestos de Hong Kong, o regime de Pequim tem usado duas vozes completamente distintas. Por um lado, falando para o exterior, tem insistido em classificar as notícias pouco elogiosas da polícia e do governo da cidade como ‘fake news’ que “negligenciam os factos”. O Partido Comunista tem usado a sua influência nos países em desenvolvimento, incluindo no mundo lusófono, para promover esta visão.
Além disso, o regime chinês tem aproveitado as críticas vindas do estrangeiro como provas de que os manifestantes estão a ser manipulados pelas “intenções malvadas” de forças externas, nomeadamente os Estados Unidos e o Reino Unido. Esta não é uma forma cínica de desviar a atenção, mas sim uma crença bem arreigada na elite comunista, traumatizada pelo chamado “século de humilhação” (百年國恥, bǎinián guóchǐ) de derrotas e ocupação estrangeira que antecedeu a revolução de 1949.
Por outro lado, falando em chinês para o interior, a linguagem usada pela imprensa estatal para descrever os protestos em Hong Kong é cada vez mais semelhante à utilizada para justificar o envio de um milhão de chineses da minoria étnica uigur para campos de reeducação em Xinjiang. Até um porta-voz da polícia de Hong Kong se referiu a grupos de estudantes pró-democracia como “células cancerígenas” enquanto agentes têm regularmente apelidado os manifestantes de “baratas”.
Naturalmente que este tipo de retórica desumanizante só agrava o medo da população quanto ao que poderá ser o futuro da cidade caso o actual movimento tenha o mesmo fim inglório da Revolta dos Guarda-Chuvas, em 2014. Receios que motivaram a maior participação de sempre nas eleições de domingo para os conselheiros distritais de Hong Kong e deram aos pró-democracia uma vitória esmagadora.
Muitos temem que o destino da cidade seja o tipo de repressão distópica implementada contra os uigures. Aliás, “Hoje Xinjiang, amanhã Hong Kong” (今日新疆明日香港) tem-se tornado um dos lemas dos protestos.
Entre a espada e a parede
No passado dia 16 de Novembro, o New York Times publicou uma reportagem baseada numa fuga de 403 páginas de documentos internos do Partido Comunista Chinês sobre a campanha de repressão em Xinjiang. Após vários atentados perpetrados em 2014 por alegados extremistas islâmicos, numa série de discursos feitos em privado em Xinjiang, Xi Jinping apelou ao uso dos “métodos da ditadura” contra o extremismo religioso, que comparou a um vírus e a uma droga altamente viciante. “Devemos ser tão cruéis como eles, sem mostrar qualquer piedade”, disse o presidente chinês.
Ainda assim, entre as partes mais surpreendentes estão vários discursos onde Xi Jinping adverte contra o exagero na reacção às naturais tensões entre os uigures e os han – maioria da população chinesa – que migraram para Xinjiang nas últimas décadas. O presidente pede ainda às autoridades da província para não discriminar os uigures e respeitar a sua liberdade de religião. Aliás, Xi Jinping rejeita como “erradas” propostas para eliminar o Islão na China, onde a religião muçulmana está presente há cerca de 1400 anos, de forma pacífica e com comunidades significativas e mesmo mesquitas em cidades como Guangdong, no sul do país, bem longe de Xinjiang.
O problema foi que, longe dos discursos em privado, a retórica pública do governo chinês levou, tal como aconteceu com outros grupos durante a Revolução Cultural, à demonização dos uigures como inimigos públicos, criando na população a expectativa de uma resposta de punho firme. A isto veio juntar-se a extraordinária lógica burocrática chinesa que levou mesmo a que as autoridades de Xinjiang estabelecessem metas para as diferentes partes da província no que toca ao número de “radicais” enviados para os campos de detenção.
Da mesma forma, a utilização de retórica inflamada no que toca aos protestos de Hong Kong pode acabar por empurrar o Partido Comunista para medidas extremas, incluindo uma intervenção armada e a repetição do massacre de Tian’anmen, em 4 de Junho de 1989.
Aceitar as exigências dos manifestantes, entre as quais a implementação do sufrágio universal em Hong Kong, significaria a aceitação por parte do regime chinês da sua impotência para conter o que a imprensa estatal tem descrito como um pequeno grupo de radicais. Seria uma humilhante capitulação para um partido – e um presidente – que tem cultivado uma imagem de poder e eficiência.
Qualquer que seja o resultado do actual movimento pró-democracia em Hong Kong, uma coisa é já certa. O discurso polarizante vindo de Pequim e a xenofobia face aos chineses do Continente demonstrada por uma parte significativa dos manifestantes criaram ódios dos dois lados da fronteira que irão perdurar por gerações.