Óvulos à venda
Foi a minha esposa que um dia mencionou o regresso às redes sociais de notícias sobre estudantes universitárias chinesas a venderem os seus óvulos para ganharem dinheiro. “E de certeza que só o fazem para poder comprar malas e roupa de marca para mostrarem às amigas no WeChat”, a principal rede social chinesa, disse ela. Esta afirmação lembra a vetusta tradição da geração mais velha acusar os mais novos de materialismo. Mas, tal como acontece em Portugal quando se discute o fenómeno da prostituição entre estudantes universitários, a realidade é sempre mais complexa do que a simples ganância.
Aliás, os próprios anúncios das agências dedicadas à venda de óvulos descrevem o processo como uma forma rápida de fazer dinheiro não apenas para jovens que “odeiam trabalhar mas gostam de gastar dinheiro” mas também para aquelas “com dívidas às costas”. Em Março passado o portal noticioso chinês The Paper revelou que uma estudante vendeu os óvulos para pagar uma dívida de 60 mil yuan (7,7 mil euros).
Ainda assim, há alguma verdade por detrás do mito. Em 2017, uma estudante disse à Shanghai Television que tinha usado parte do dinheiro que recebeu por vender os seus óvulos para comprar um iPhone. Se os mais velhos, criados ainda sob o espectro da pobreza e fome, tinham como prioridade poupar dinheiro e investi-lo em bens sólidos, já as novas gerações chinesas sentem-se obrigadas a desejar as vidas glamorosas que vêem nas redes sociais.
Mesmo que nem tudo o que brilhe seja ouro. No mês passado, Lisa Li, conhecida por escrever sobre viagens, festas e restaurantes de luxo, teve de pedir desculpas a 1,1 milhões de seguidores após a senhoria ter acusado a ‘blogger’ chinesa de deixar um apartamento em Xi’an coberto de excrementos de cão e com contas de luz e água por pagar.
Ignorância repetida
Mais importante, creio eu, seria analisar como é que o fenómeno da venda de óvulos reflecte a crónica ausência de educação sexual nas escolas chinesas. O resultado é uma estudante da China continental que evita sentar-se na mesma mesa com rapazes porque a mãe lhe disse que assim podia engravidar, contou-me uma amiga de Macau que foi para uma universidade do Reino Unido.
Afinal, todo o processo tem riscos para a saúde, uma vez que as mulheres tomam drogas para produzir até 30 óvulos de uma só vez (o normal é um óvulo por ciclo menstrual). Além de provocar efeitos secundários a curto prazo, este tipo de drogas pode aumentar o risco de aborto espontâneo numa futura gravidez ou mesmo causar a síndrome de hiperestimulação ovárica, que pode ser fatal. Além disso, em muitos casos a colheita dos óvulos é feita sem anestesia. Há três anos, o jornal Southern Metropolis Daily revelou que uma adolescente de 17 anos quase morreu após se submeter a este procedimento.
É hoje possível na China, através de aplicações para telemóveis, pedir uma opinião a médicos qualificados por uma bagatela – algo a que eu próprio já recorri. Ou seja, sublinhou a minha esposa, estas estudantes deviam ser mais desconfiadas antes de caírem no logro. O problema é que os jovens chineses são o produto de um sistema de educação que não encoraja o espírito crítico, ao recompensar a memorização e regurgitação quase mecânicas dos conteúdos debitados na sala de aula. “Quantas vezes ouviste um estudante chinês a questionar um professor sobre o porquê de seja o que for?” perguntei eu à minha esposa, antiga docente universitária. O riso envergonhado dela deu-me a resposta: zero.
Doação recompensada
Desde 2009 que notícias sobre a venda de óvulos por parte de estudantes universitárias circulam de forma viral nas redes sociais chinesas. É verdade que a lei já proíbe transacções comerciais de óvulos, o que apenas empurrou as agências para uma zona cinzenta. O processo passou a ser descrito como uma doação, no qual as doadoras podem receber até 100 mil yuan (12,8 mil euros) como “compensação pelas perdas nutritivas” e despesas de alojamento e viagem.
A recorrência destes casos reflecte a fraca motivação do regime chinês em regular uma economia que há muito deixou de ser comunista, sobretudo numa altura de desaceleração, em parte causada pela guerra comercial com os Estados Unidos. Há muito que o Partido Comunista demonstra um estóico desdém pelo bem-estar e qualidade de vida da população chinesa, por exemplo ao tentar abafar o escândalo do leite contaminado com melamina (um tipo de plástico) que em 2008 envenenou 54 mil bebés, seis dos quais morreram.
De uma forma geral, as autoridades chinesas apenas reagem a fogachos de pânico moral da opinião pública e normalmente apenas enquanto o assunto ocupa as manchetes. As duas óbvias excepções são as campanhas do Presidente Xi Jinping contra a poluição e contra a corrupção (sendo que esta última serviu também fins políticos). Em comum têm o facto de serem ambas reais ameaças ao domínio do Partido Comunista.
No brilhante livro “Irmãos”, do escritor chinês Yu Hua, um milionário organiza um concurso de beleza para virgens, que descamba após muitas das concorrentes recorrerem a hímenes artificiais para subornarem os juízes com sexo. O capitalismo selvagem da China, onde tudo se vende e tudo se compra, permanece inalterado.
Foto de destaque: Elena Έλενα Kontogianni Κοντογιάννη (pixabay.com)