A hierarquia das línguas dos hàn
Estou a viver há um mês com a Mathilde em Hamcheu. Sim, Hamcheu, o antiquíssimo nome português de Hángzhōu (transcrição segundo o sistema “pīnyīn”, ou ainda “Ang-djê” em dialecto local). Aliás, num artigo recente escrevi precisamente sobre esta cidade e sobre uma professora chinesa de língua portuguesa que aí nasceu.
Ao viajar de avião para Hangzhou, nós tínhamos pouquíssimo espaço para a bagagem, e os livros tornaram-se numa espécie de artigos de luxo. Antes de aqui chegar, passámos por Macau e daí decidi juntar ao meu saco do computador, que estava a ponto de explodir, a tradução chinesa de “Lotte em Weimar” de Thomas Mann. Nas primeiras páginas da obra, Mann explica como a protagonista Lotte usa o pronome “Er” (ele) em alemão, como forma arcaica e dialectal para exprimir o “Sie” (vós). O tradutor da reconhecida editora “Shanghai Translation Publishing House”, Hòu Jùnjí (E Djin-djiat em xangainense), optou por traduzir esta palavra com o pronome xangainense “nong” (tu/vós, em português). Ao ler este livro na véspera da partida, vi-me obrigado a levá-lo comigo.
A visão que tenho do mundo das línguas é a perfeita ilustração da badalada expressão europeia “os grandes peixes comem os pequenos”. Passo a explicar: tanto o mandarim como o cantonense, as duas línguas reconhecidas como o “chinês” na República Popular da China e nas duas regiões administrativas especiais chinesas, respectivamente, são padronizadas. Isto apesar de partirem de princípios fundamentalmente diferentes e com objectivos muito distintos.
No entanto, hoje assistimos ao reconhecimento de uma só variante destas línguas muitíssimo diversificadas como língua padrão. Esta situação leva-me à língua flamenga na Bélgica – os seus falantes lutaram durante muito tempo para que esta se tornasse oficial, embora hoje não possa deixar de constatar que uma certa hierarquia existe entre a língua oficial e os seus “dialectos”, que são desencorajados.
Por outro lado, penso que a padronização artificial das línguas está longe de ser perfeita. Várias línguas que viveram durante muito tempo na ignorância e não foram então sistematicamente padronizadas – como é o caso das línguas turcomanas na antiga União Soviética – salvaguardaram particularidades da sua história.
Mas voltando à China, os (sub-) dialectos dos wu (variante da língua chinesa falada na região onde se encontra Xangai e que se pronuncia “u” nas várias formas desses dialectos) são um bom exemplo deste fenómeno: o mandarim tem uma grande influência sobre estes dialectos, que sobrevivem graças à importância económica das suas cidades da região. Tendo em conta que a língua dos wu não sofreu uma padronização sistemática e persistente e que os seus (sub-) dialectos não foram agrupados numa só variante legítima, esta língua, também chinesa, conserva vários centros, nomeadamente Xangai (Sang-h’é neste dialecto) e Hamcheu. A primeira cidade é a capital económica chinesa, outrora apelidada de “Paris do Oriente” e a segunda foi capital imperial da dinastia Song do sul, entre os séculos XII e XIII.
Influenciado pelo regionalismo alemão e inspirado por um certo “proteccionismo” linguístico da minha língua materna – o cantonense – sinto um grande interesse pela aprendizagem dos dialectos de Xangai, de Sucheu (So-djei neste dialecto ou Sūzhōu segundo o “pīnyīn”), e sobretudo, de Hamcheu.
Como sabemos (ou podemos imaginar), muito antes do ‘cantocentrismo’ de Hong Kong e de Macau existir, as duas antigas colónias eram uma espécie de “melting pot” dos vários dialectos chineses, o que é notório por exemplo em muitos filmes de Hong Kong. No clássico “Dias Selvagens” (1990), Wong Kar Wai (ou Uang Ka Uei, em xangainense) filmou um diálogo entre o protagonista Yuddy (Leslie Cheung) em cantonense e a sua mãe (Rebecca Pan) em xangainense. Esta conversa é ainda hoje um momento clássico do cinema de Hong Kong. Como faríamos para dobrar esta cena? Seria como se o filho falasse português e a mãe respondesse em francês.
Mais ainda: Dong Qing (nome a pronunciar praticamente da mesma forma em mandarim como em xangainense), reconhecida apresentadora da CCTV, originária de Xangai, recitou uma vez um poema de Han Yu (768-824) no seu dialecto durante um concurso televisivo de leitura de poemas clássicos. Que beleza! O xangainense é hoje – diria eu sem base científica mas apenas através da minha impressão pessoal – um dos dialectos chineses que mais orgulha os seus falantes dentro da República Popular da China. Isto se excluirmos o cantonense e o fuquienense que, penso eu, sobrevivem ao interesse político que compõe HMT (Hong Kong-Macau-Taiwan).
O facto de Xangai ter sido, por exemplo, escolhido para ser o ponto de concessões dos vários poderes coloniais estrangeiros, teve uma influência sobre a língua, na medida em que ainda hoje se escutam muitos anglicismos. [Aqui uma breve nota: há 11 anos, entrevistei um senhor macaense e luso-descendente de Xangai em São Francisco que se refugiou em Macau durante a guerra. Disse-me que falava o “Sang-h’é-ua”. A presença portuguesa aí comprova-se, aliás, com o facto da bandeira de Portugal durante a monarquia ter sido incluída no emblema da Câmara Municipal da concessão internacional.]
Voltando ao tema, o dialecto de Hamcheu possui uma outra particularidade: sendo esta antiga capital o lugar para onde no passado a família imperial fugiu, o falar local acabou por absorver características do antigo mandarim. Um exemplo: a muitas palavras deste dialecto é ainda hoje acrescentado um sufixo tipicamente do mandarim do norte “- er”, provavelmente comparável a um “r” americano exagerado, embora Hamcheu esteja localizado no sul da China, a duas horas de avião de Macau.
Ao longo da minha aprendizagem experimental linguística, que olho como se fosse uma espécie de turismo intelectual, comecei a aprender a pronúncia dos caracteres hàn (conhecidos como “caracteres chineses”) nos outros dialectos, como o hac-ka (hàn do mandarim pronunciado “h’on” neste dialecto) ou fuquienense (“h’an”, quase a mesma pronúncia como em mandarim), assim como noutras línguas, como o coreano (os hanja), o cuengh, o japonês (os kanji) e o vietnamita (os Hán Tự). Diria que enquanto falante de cantonense como língua materna, aprender coreano, cuengh, japonês e vietnamita constitui para mim uma viagem histórica. Já a aprendizagem dos dialectos chineses é uma viagem geográfica.
De maneira empírica compreendi que os dialectos chineses estão ligados “geograficamente”, e esta visão diferencia-se da perspectiva da Europa, onde se pode observar uma grande ruptura linguística, como a que existe entre o cantonense e o mandarim, por exemplo. Quando partimos do sul, desde o cantonense (Cantão-Hong Kong-Macau), passando pelo hac-ka, chio chao (teochew) e fuquienense (entre a província cantonense e aquela fuquinense), para chegar aqui, à capital da província do Chekiam (oficialmente Zhejiang, onde se fala o dialecto de Hamcheu) – e estamos a falar de três províncias costeiras – vemos muito bem como os dialectos chineses variam ao longo das regiões.
Não posso deixar de referir ainda que os falantes destes dialectos partilham um orgulho comum enquanto “línguas do sul”: quando se diz um poema escrito em chinês clássico, cada um reivindica que é no seu dialecto que este poema é mais melódico. E não só, muitos dos falantes defendem igualmente a legitimidade do seu “chinês” em dialecto como sendo o autêntico herdeiro do chinês clássico, ou seja, do velho império dos céus.
A teoria regionalista segundo a qual o cantonense seria o verdadeiro herdeiro do chinês clássico e o mandarim teria sofrido a influência “bárbara” de línguas, como o manchu ou o mongol, é largamente criticada pelos chineses e também pelos próprios habitantes de Hong Kong, que defendem a sua singularidade pós-colonial. De facto, não existe qualquer dialecto chinês que não tenha tido uma influência “bárbara”. O cantonense, segundo a compreensão que tenho, é justamente o produto de uma mistura múltipla de várias versões históricas do “chinês” (incluindo o mandarim moderno), impostas na região linguística ao longo de milhares de anos. Além disso, o cantonense contém um certo número das palavras indígenas – isto é, “bárbaras” – que encontram as suas origens nas diferentes línguas não-hàn nesta região. É aqui igualmente interessante sublinhar que esta teoria reflecte precisamente a velha visão do universo chinês, segundo a qual a China seria o centro do mundo e os povos longínquos à margem deste Império Celeste deveriam ser todos considerados como “bárbaros”. Há precisamente dois anos, a luta de um cantor de cantopop de Hong Kong para defender a teoria de que o cantonense era o verdadeiro herdeiro do chinês clássico gerou uma polémica enorme no país. Naturalmente o cantor enfrentou vários ataques, mas o que atraiu mais a minha atenção foi o facto dos falantes de outros grandes dialectos não defenderam a autenticidade das suas próprias línguas, apelando, em contrapartida, a favor da diversidade linguística do país.
Na República Popular da China, o que é designado politicamente como o “chinês” é indiscutivelmente o mandarim, embora este não seja o caso nas duas regiões administrativas especiais onde o “chinês” é o mandarim e o cantonense ao mesmo tempo.
Em Taiwan, Singapura ou na Malásia, falar em “chinês” serve para designar apenas o mandarim e separá-lo, desta forma, de outros dialectos que estão sempre hierarquicamente abaixo do mandarim na República Popular da China em termos políticos ou socioculturais. Mas independentemente da visão que se tem – da existência de uma só língua chinesa ou de que cada dialecto é uma língua sínica distinta – o mandarim tem na República Popular da China uma posição absolutamente predominante. Observamos claramente que existe uma tendência para o mandarim vir a substituir todas as outras línguas locais num tempo próximo. Se isso acontecer, escusado será dizer que se trata de uma perda irrecuperável para esta cultura riquíssima. Ao procurar material para aprender o dialecto de Hamcheu, apercebi-me com a maior alegria do grande interesse afectivo e dos esforços feitos por falantes desta língua para a salvaguardar. Isto embora – e por todas as razões que possamos imaginar – alguns destes apontem que acima de tudo está o mandarim.
Há alguns anos descobriu-se numa escola da Catalunha Norte, em França, o seguinte slogan num mural: “FALEM FRANCÊS, SEJAM LIMPOS”. É exactamente este género de frases que podemos ver hoje em dia em todo o lado, na China: “FALEM MANDARIM, SEJAM CIVILIZADOS”. A China tem imposto com grande insistência o mandarim exactamente da mesma maneira como muitos países no mundo eliminaram outras línguas (para falar de forma politicamente correcta, eliminaram outras variantes da mesma língua). Mesmo assim, surpreende-me constatar que os dialectos chineses estão hoje mais fortes e vivos do que, para dar um exemplo, os dialectos alemães. Muitos jovens que vivem na República Popular da China falam ainda fluentemente idiomas locais e, naturalmente, o mandarim. Em termos culturais é à diversidade que deve ser atribuída maior legitimidade. Temos de fazer algo para a defender. É agora ou nunca.