No alto de antigas fábricas urbanas, um grupo de graffiters encontrou a liberdade
Em Macau, onde o graffiti tem pouca tradição e tem vindo a ganhar uma dimensão comercial, persiste um pequeno grupo de artistas que sobe aos terraços de edifícios industriais e os transforma em ateliês. “O graffiti é na sua essência um acto ilegal”, diz Pat Lam, writer local.
Do topo de um edifício industrial na zona norte da cidade, a imagem é quase apocalíptica: vêem-se antigas fábricas urbanas, altas, com telhados imundos, aparelhos de ar condicionado pendurados à toa, vidros partidos, e um grupo de blocos residenciais onde vive meio mundo. Do alto deste 16.º andar, o dia fecha-se sobre nós, é possível antecipar a tempestade que aí vem. E onde olhamos de frente o mundo prestes a desintegrar-se, um grupo de graffiters encontrou a liberdade.
Para alcançar o ponto mais alto do edifício – território que poucos transpõem – falta subir dois lances de escadas, verticais e de ferro. Vencido o primeiro lance, olhamos de frente um muro pintado. No lado direito, Pat Lam desenhou uma criança a segurar uma flor, com um gato pousado sobre a cabeça, representação da aliança entre o homem e o animal, tema recorrente na obra do artista. Na imagem, encontramos ainda elementos que nos permitem reconhecer a autoria do trabalho: uma coroa e um coração são assinaturas frequentes deste graffiter de Macau, mais conhecido entre os pares como pibg (iniciais de ‘pat is bombing graffiti’) – bomb significa cobrir uma área de graffiti.
Já na outra extremidade do muro lê-se KOSH, o pseudónimo de outro artista, desenhado em letras grandes. Subimos então as últimas escadas. Ao longe, os nomes de KOSH e de pibg aparecem novamente noutros terraços, cores fortes agitam a geometria monótona destas fábricas verticais. A imagem da moderna cidade, o rio das Pérolas, a maior ponte marítima do mundo, tudo está para além disto.
“As palavras são a arma mais forte”
Foi aí mesmo, no bairro da Areia Preta, e há mais de 20 anos, que Pat Lam saiu de skate uma noite para regressar a casa com duas latas de tinta de spray roubadas. Talvez tenha sido esse carácter transgressor – a que o graffiti está associado – que o levou mais tarde a desenhar uma folha de canábis num muro no bairro onde cresceu. Tinha 12 anos, recorda: “Encontrei uns miúdos portugueses a pintar perto de minha casa, fiquei ali a observar o que estavam a fazer e roubei as duas latas”.
Hoje, passadas quase duas décadas, todas as buscas pela história do graffiti em Macau remetem para o percurso de Pat Lam, que fundou com um grupo de amigos em 2004 a primeira crew (ou krew) de graffiti em Macau, o GANTZ5.
– “Macau tem cerca dez writers – nós identificamo-nos como writers, porque no graffiti escrevemos o nosso nome”, diz.
– “Menos de dez”, corrige Stone, amigo, graffiter.
– “Pedi ao Stone que viesse hoje comigo, porque é importante que se ouça falar de outros nomes, que se conheça a nova geração de graffiters”, acrescenta Pat.
Falamos com os dois artistas no espaço Anim’Arte, nos Lagos Nam Van, onde o governo criou há poucos anos a “Área de Exposições de Graffiti”, um dos espaços criados na cidade pelas autoridades para expor o trabalho de artistas locais e de fora.
– “Eu não faço trabalho comercial”, nota de imediato Stone.
Writer há cerca de quatro anos, Stone sobe aos terraços de Macau sem pedir autorização, rejeita o compromisso, assim como rejeita a cor, e é a preto e branco que intervém no espaço urbano. Aparece para esta entrevista de boné e máscara, pede para não ser identificado, porque acredita que a liberdade só existe enquanto anónimo. Através do hip hop, conta, chegou ao graffiti. “Comecei por ver vídeos na internet, investiguei o que era e comecei a praticar. É fácil encontrares trabalhos nos terraços, que é onde a maioria do pessoal actua. Juntam-se em jam-sessions ou pintam por cima de outros trabalhos”, salienta Stone, que aponta para a vida curta do graffiti – as inscrições são em geral transitórias, devido à limitação de espaço, à própria transformação da matéria urbana.
Mas afinal o que é o graffiti? “O graffiti é na sua essência um acto ilegal”, responde Pat Lam. Apesar de ser convidado frequentemente pelo governo e por empresas locais para desenvolver projectos em Macau, o artista admite que é nos telhados que se faz mais street art em Macau. Um writer vive “à procura do momento perfeito”, diz. “Já tive problemas e luto comigo próprio, porque às vezes quando encontro um canto numa rua, uma parede perfeita e quero realmente fazer alguma coisa, tenho dois caminhos: ou faço ilegalmente ou peço autorização ao dono da propriedade. Deixarem-nos fazer isso é um grande apoio ao trabalho dos artistas”, reforça.
No dia em que o tufão Hato arrasou Macau, há cerca de dois anos, Pat desceu ao rio, cravou no paredão a palavra “home” (casa), que se confunde na imagem com “hope” (esperança). A assinatura – um coração – denuncia o autor, embora ainda hoje não se saiba como e quando aconteceu. “As palavras são a arma mais forte”, observa.
“Já tive problemas e luto comigo próprio, porque às vezes quando encontro um canto numa rua, uma parede perfeita e quero realmente fazer alguma coisa, tenho dois caminhos: ou faço ilegalmente ou peço autorização ao dono da propriedade. Deixarem-nos fazer isso é um grande apoio ao trabalho dos artistas”
“As pessoas só querem ter uma parede bonita para tirar uma fotografia”
A 21 de Julho de 1971, lia-se no The New York Times: “Taki é um adolescente de Manhattan, que escreve por onde passa o seu nome e o número da rua onde vive. Ele diz que é algo que tem de fazer. Taki 183 aparece em estações de metro e dentro de carruagens em toda a cidade, nas paredes ao longo da Broadway, no Aeroporto Internacional J.F. Kennedy, em Nova Jérsia, Connecticut, no interior de Nova Iorque e outros lugares. Atraiu milhares de seguidores, incluindo Joe136, BARBARA62, EEL159, YANG135 e LEO136”.
Taki era o tag (assinatura) de Demetrios, norte-americano de origem grega que vivia na rua 183 do bairro nova-iorquino Washington Heights e um dos precursores do graffiti contemporâneo, que se desenvolveu nos Estados Unidos em finais dos anos 1960. “A remoção destas palavras, além das obscenidades e outros graffitis nas estações de metro, custou 80 mil horas de trabalho, ou cerca de 300 mil dólares americanos, no ano passado, estima a Autoridade de Trânsito”, lê-se ainda no New York Times.
O graffiti, enquanto expressão artística e rosto da contracultura ganhou mundo, dividiu sociedades civis e governos. À medida que se agitavam as latas de spray, as cidades transformaram-se, as técnicas evoluíram, declararam-se guerras às inscrições nas paredes. Portugal, por exemplo, aprovou legislação em 2013, estabelecendo multas para os infractores entre os 100 e os 25 mil euros.
Em Macau não existe uma lei que regule especificamente esta matéria. No entanto, a Lei da Salvaguarda do Património proíbe a execução de inscrições ou de pinturas em bens imóveis classificados ou em vias de classificação. E esta é também a excepção para os dois graffiters entrevistados. “Estamos a tentar criar uma cultura, por isso devemos respeitar outra cultura”, observa Pat.
O Regulamento Geral dos Espaços Públicos de Macau estabelece a mesma proibição em equipamentos públicos “salvo permissão legal ou administrativa”. “Para escrever, pintar ou fazer graffiti em propriedade privada é necessária a aprovação prévia do dono do edifício”, respondeu por email o Instituto para os Assuntos Municipais, referindo, porém, que a propriedade privada não está sob a alçada daquele departamento.
“Em Macau estás tão confortável, consegues tudo o que queres tão facilmente, que as pessoas não se importam. Faças o que fizeres, podes ir para a rua pintar o que te apetecer, mesmo a polícia passa por ti e não está interessada no que estás a fazer”, refere Stone, chamando a atenção para o desinteresse generalizado da população nesta forma de arte.
O graffiti ganhou visibilidade nos últimos anos, admite Pat, mas como produto comercial: “E as pessoas só querem ter uma parede bonita para tirar uma fotografia”.
O graffiti, enquanto expressão artística e rosto da contracultura ganhou mundo, dividiu sociedades civis e governos. À medida que se agitavam as latas de spray, as cidades transformaram-se, as técnicas evoluíram, declararam-se guerras às inscrições nas paredes
“A questão é trabalhar muito, ser-se constante e buscar um alto grau de qualidade e técnica e temática”
Uma garça a debicar um caranguejo, uma borboleta pousada sobre o tentáculo de um polvo e a sobrevivência de uma embarcação em alto mar – estas são imagens que dão vida a “Aventura Marítima”, a mais recente obra em exposição no mural do Anim`Arte.
Pat Lam conheceu o artista uruguaio Nicolás Sanchez Alfalfa num festival em Nanxian, província chinesa de Hunan, e convidou-o para este projecto, uma iniciativa do Instituto Cultural. “É um trabalho que está relacionado com o mar, a fantasia, A-Ma, a deusa dos mares que observa como as coisas acontecem, sem intervir nelas”, explica Nicolás ao EXTRAMUROS por correio electrónico.
Nascido na Venezuela em 1983, Alfalfa define o seu trabalho como “mitologia local contemporânea” – através de linhas negras de diferentes espessuras dá forma a criaturas fantásticas que o perseguem desde pequeno. Não é graffiti que faz, mas muralismo. “Está mais vinculado a técnicas históricas – pintura a óleo, técnicas gráficas tradicionais como gravura, água-forte, litografia – é muito mais artístico no sentido tradicional que os outros dois [graffiti e street art] e explora mundos pessoais e estéticos”.
O panorama da arte urbana de Macau faz lembrar Montevideu, capital uruguaia, onde reside e trabalha. “Tinha também uma cena muito reduzida, mas a questão está em trabalhar muito, ser-se constante e buscar um alto grau de qualidade e técnica e temática”, diz o muralista, que olha para a Europa como o lugar por excelência onde a arte urbana tem maior aceitação.
Pat e Stone falam do momento chinês. “Cresce o hip hop, a street dance, o rap, e o graffiti”, nota Stone. E porquê? “Antes não existia, mas agora que existe a oportunidade, estão atentos e fazem-no tão bem”.