Os jogos e os “gostos duvidosos” do patriotismo
Há alguns dias fui apanhado por um grupo de adolescentes num pequeno parque onde passeava com a minha filha. Após muita discussão entre eles, houve um que lá tomou coragem e veio dizer-me olá em inglês. Assim que perceberam que eu sabia falar chinês, desataram a fazer as perguntas do costume até que lá surgiu uma questão que me apanhou desprevenido: “Sabes jogar ‘Honour of Kings’?”, um jogo electrónico para telemóvel.
Quando lhes respondi que preferia jogos no computador, olharam para mim como um animal prehistórico. “Hoje já não posso jogar mais ‘Honour of Kings’”, disse-me o mais corajoso. “Então porquê? A tua mãe não te deixa?” perguntei eu. Eles riram-se e um deles lá respondeu, em tom de lamento: “Não, agora só dá para jogar duas horas por dia”.
Há dois anos a Tencent teve de introduzir este limite para todos os jogos da gigante chinesa, incluindo o “Honour of Kings”, um dos mais populares na China continental. Isto poucos meses após um editorial do jornal estatal chinês Diário do Povo ter descrito o jogo como “um veneno” que espalhava “energias negativas”.
Há um provérbio chinês sobre o preço da fama (人怕出名猪怕壮, rén pà chūmíng zhū pà zhuàng), segundo o qual o porco que engorda mais depressa é o primeiro a ir para o matadouro. Talvez por isso tenha sido o “Honour of Kings” um dos primeiros jogos a ser afectado por novas regras, aprovadas face à crescente preocupação da população chinesa com os casos de jovens viciados em jogos electrónicos, assim como o seu impacto na miopia entre as novas gerações e o seu conteúdo violento.
Mortos mas alegres
Um outro alvo foi o “PlayerUnknown’s Battlegrounds” ou PUBG, o maior sucesso internacional da Tencent, que foi retirado da Internet na China continental em Maio passado. Foi substituído por “Elite Force for Peace”, onde o sangue foi substituído por um líquido cinzento e onde, quando morrem, os inimigos acenam alegremente a dizer adeus e desaparecem.
Além disso, em “Elite Force for Peace”, o jogador treina com o Exército de Libertação do Povo Chinês para combater o terrorismo. Este foi o primeiro de uma série de jogos recheados de valores socialistas e temas patrióticos, lançados após um ano em que o regime chinês apertou ainda mais as malhas da censura a conteúdo suspeito de violar os valores socialistas, congelando a aprovação de novos jogos.
Na maior feira da indústria de jogos electrónicos da China, a ChinaJoy, que decorreu em Xangai no início do mês, a Tencent anunciou duas colaborações, uma com o Departamento de Propaganda do Partido Comunista na província de Guangdong e outra com o jornal estatal Diário do Povo: “Homeland Dream”, onde o jogador tem de desenvolver uma cidade aplicando políticas do Partido Comunista. A NetEase, principal rival da Tencent, lançou “Ink, Mountains and Mystery”, um jogo de aventura que inclui monstros da mitologia tradicional chinesa.
Guo Yiqiang, chefe do gabinete de publicações do Departamento de Propaganda do Partido Comunista Chinês, disse num discurso na ChinaJoy que as empresas “precisam de ter em conta os efeitos sociais (…) e sempre remar na direcção certa no que toca à política, valores, conteúdo temático e qualidade, sem nunca servir de plataforma ou canal para visões erradas ou gostos duvidosos”.
Sem razões para celebrar
A obsessão do regime chinês com estes “gostos duvidosos” não se restringe aos jogos electrónicos. No mês passado as autoridades proibiram as televisões chinesas de transmitir, mesmo através da Internet, mais novelas históricas – o género mais popular na China – ou dramas românticos, que deverão ser substituídos por uma lista de 86 dramas patrióticos.
Segundo a Administração Estatal de Rádio e Televisão, o objectivo é “garantir que o ambiente geral seja coordenado” com o 70º aniversário da fundação da República Popular da China, que se celebra a 1 de Outubro.
Longe de ser um período de celebração, 2019 não tem sido um ano fácil para o Presidente Xi Jinping. Além de ter sido obrigado a voltar a aumentar a dívida pública para fomentar o consumo e manter a economia estável, apesar da guerra comercial com os Estados Unidos, o Partido Comunista vê-se agora a braços com uma rebelião sem fim à vista em Hong Kong.
O regime chinês tem culpado “influências ocidentais” pelos protestos em Hong Kong, dando como prova o encontro entre uma diplomata norte-americana e líderes do movimento pró-democracia, assim como o uso de bandeiras norte-americanas por parte dos manifestantes.
O mesmo receio destas funestas influências externas explica uma campanha lançada nos últimos meses para “proteger a cultura chinesa”, apagando nomes considerados “estrangeiros”. Por exemplo, em Pequim dezenas de restaurantes e tascas de comida muçulmana foram obrigados a retirar sinais em arábico e símbolos muçulmanos. Isto apesar da religião muçulmana ser uma parte integrante da China há cerca de 1400 anos.
Politicamente correcto
Esta campanha chegou mesmo ao cinema e à televisão, onde uma série chinesa originalmente chamada “Em Nova Iorque” passou a chamar-se “Espero por ti em Pequim”. O nacionalismo e o papão das “influências ocidentais” são usados para justificar o extremo conservadorismo social de um Partido que de revolucionário já nada tem.
Em Maio passado, as autoridades obrigaram a Jinjiang, uma das maiores plataformas chinesas de literatura online, a apagar as secções de “romance histórico” e “fantasia”. A plataforma ficou ainda impedida de adicionar novo conteúdo durante 15 dias, enquanto as autoridades vasculhavam o arquivo à procura de mais conteúdo “pornográfico”.
A comunidade LGBT é obviamente a mais atingida. Já em Novembro passado, uma escritora chinesa conhecida pelo pseudónimo Tianyi tinha sido condenada a mais de 10 anos de prisão por ter vendido mais de 7 mil cópias de um romance que descrevia uma relação homossexual entre um professor e um aluno. Também no ano passado três ‘drag queens’ foram presas na cidade de Suzhou, bem perto de Xangai.
Curiosamente, outros homens que se vestem de mulheres aparecem em programas na televisão estatal chinesa e são convidados para dar espectáculos em todo o país. Qual a diferença? Estes são peritos em dàn (旦), papéis femininos desempenhados por homens nas várias formas regionais da ópera tradicional chinesa, uma forma de arte que Xi Jinping tem promovido.
Num país onde, mais do que censurada, a expressão é vigiada, só sobra espaço para o politicamente correcto.