Polícia, um conceito ocidental nas línguas sínicas
As imagens de confrontos entre a polícia e manifestantes não são coisa rara na imprensa. A situação em Hong Kong, antiga colónia da Coroa Britânica, e hoje região administrativa especial chinesa, tem sido nas últimas semanas um exemplo particular disso. É neste contexto que existe uma urgência intelectual de clarificar a génese da palavra chinesa que designa esse conceito ocidental que é a “polícia”, e como esse conceito se viu reapropriado pelo mundo das culturas confucionistas. Com efeito, diversos conceitos ocidentais, cuja influência é particularmente forte na sociedade pós-colonial que é Hong Kong, foram adoptados ao longo do século passado pelos sinófonos, e tal através do Japão.
Neste artigo, vamo-nos concentrar na entrada do conceito “polícia” nas línguas chinesas como um conjunto, partindo da etimologia desta palavra, que foi traduzida e introduzida pelos japoneses no século XIX, fazendo-se servir dos caracteres do chinês clássico : “警察” – dois caracteres que são igualmente encontrados em diferentes idiomas da Ásia Oriental, pronunciando-se respectivamente como kei-satsu em japonês, keng chat em cantonense, jǐngchá em mandarim de acordo com o “pinyin”, kin tchat em hac-ka e fuquienense com uma diferença nos tons, djin tchaq em xangainense, guieong tchal em coreano, cảnh sát em vietnamita e, por fim, gingjcaz em cuengh (também oficialmente conhecido como o zhuang na China). Tanto o primeiro carácter “警” como o segundo “察” não foram simplificados nem nas línguas do leste asiático nem na grafia vietnamita tradicional. O cuengh, o coreano e o vietnamita, por seu lado, abandonaram no entretanto estes caracteres a favor dos seus próprios sistemas de escrita.
Para começar, faremos a desconstrução dos dois caracteres que perfazem a palavra “polícia”, partindo depois para uma análise etimológica. “警” é, como muitos dos caracteres de origem chinesa, composto de maneira fonético-semântica: a parte superior do carácter “敬” significa respeito, enquanto que a inferior “言” significa fala. “敬” é novamente composto por “茍” e “攴”. “攴”, que originalmente queria dizer “leve bater”, foi perdendo ao longo do tempo o uso como carácter independente, e hoje em dia não é mais do que um radical. Já “茍” (uma ovelha “羊” na parte de cima, uma pessoa ajoelhada “卩” na base, e no meio uma boca “口” foi depois adicionada de forma a dar ao todo uma ideia de “cautela no discurso”). Uma teoria é que este carácter simboliza, na escrita em ossos oraculares, uma pessoa de um povo antiquíssimo dos primórdios da história chinesa, ajoelhada e com um chapéu de cabeça de ovelha. Esta mesma pessoa, uma vez em pé, é então representada pelo carácter “羌”, que é a combinação de uma ovelha “羊” e de um homem “人”. Esse carácter é lido como keong em cantonense, qiang em mandarim, guiong em hac-ka, kiong em fuquienense, tchia em xangainense, e utiliza-se precisamente na escrita do nome desse povo ancestral. No sentido original, uma pessoa de joelhos significa aquilo que em português chamaríamos de “autocrítica” ou “auto-vigilância”, e é precisamente esta noção que confere ao carácter “敬” o seu sentido de “respeito” ou de “respeitar” em chinês moderno.
Na escrita em ossos oraculares, o conjunto “茍” significa de igual modo “admoestar”. Os caracteres mais recentes “敬” e “警”, que foram criados mais tarde (particularmente no caso do último) desenvolveram-se de igual modo em referência a esses ecos de “admoestar”, ou mesmo de “advertir”. O chinês clássico era, como sabemos, uma língua de grande flexibilidade gramatical, na qual cada carácter podia desempenhar várias funções sintácticas – o cantonense moderno é um dos vários dialectos chineses que herdaram esta especificidade. Seguindo este princípio, o carácter “警” pode significar tanto “evitar”, “prevenir”, “observar” quando é usado como verbo, “ágil”, “cauteloso”, “sucinto” enquanto adjectivo, “alarme”, “urgência” e, naturalmente também de “polícia”- ao ser utilizado como abreviatura – enquanto substantivo.
O segundo carácter “察” é composto pelo radical “宀” e pelo fonograma “祭” que lhe confere a pronúncia no chinês clássico. O componente “祭” faz referência aos rituais de sacrifício de animais, sendo um dos fonogramas que se mantiveram nesse carácter ao longo da história. Embora este componente não tenha aqui um valor significativo, pode apesar de tudo ser interessante decompô-lo de modo a compreendê-lo melhor. “祭” é composto pelo carácter “肉”, que quer dizer “carne” no canto superior esquerdo; “又”, que significa “mão direita” no canto superior direito, coroando o “示” por baixo. Com efeito, na escrita em ossos oraculares, esse carácter simbolizava precisamente um pedaço de carne numa mão. A terceira componente “示” foi mais tarde adicionada na parte inferior para reforçar a ideia de rituais dedicados aos antepassados ou aos deuses, e, de acordo com certas teorias, este carácter representaria até os pequenos troncos de madeira utilizados como representação material desses mesmos antepassados ou deuses durante esses rituais. O radical “宀” mencionado no início deste parágrafo é, segundo o estudioso Cheng Chih-t’ung (Zheng Zhitong, 1831-1890), um pictograma que, na escrita em ossos oraculares, representa a forma de uma casa, mais especificamente o telhado que a cobre. Na ordem de escrita dos traços em chinês, aparece primeiro o radical – o telhado que cobre a casa – e só depois o carácter que lhe atribui o tom. É nesse sentido, nesse movimento de cima para baixo, que observação, investigação e vigilância operam segundo a hierarquia confucionista.
Ora, o conceito ocidental de “polícia” foi introduzido por Kawaji Toshiyoshi (1834-1879), também chamado de “pai da polícia japonesa” na Ásia oriental. De acordo com o modelo francês, Kawaji tornou-se em 1874, em Tóquio, o primeiro chefe de polícia no sentido estritamente europeu do termo. A palavra nos caracteres japoneses de origem chinesa “警察” (kei-satsu), sob o reinado do novo imperador Meiji – e sob a grande influência que o Ocidente exercia sobre o Japão naquela época – tornar-se-ia oficial nesse mesmo ano. Esta palavra foi adoptada de seguida em chinês, coreano e vietnamita. A palavra “polícia” não me parece possuir na sua origem grega, pelo menos numa leitura literal, o significado que ecoe “vigilância”. Por outro lado, no japonês, já existia no século XIX uma série de termos relativos para transmitir precisamente essa nuance de “vigilância”. Entre estes termos podemos encontrar “警保” (kei-h’o, aqueles que estão em alerta para proteger, isto é, a polícia), “警邏” (kei-ra, vigilante-patrulha) ou até “警視” (kei-shi, aqueles que atendem vigilância, isto é, os superintendentes) e, é claro, o termo para “polícia” que é hoje em dia universal no mundo confucionista: “警察” (kei-satsu). Como é fácil constatar, os termos técnicos japoneses acima citados possuem todos “警” como primeiro carácter.
No que diz respeito à origem da palavra “polícia” no Ocidente, as traduções literais da palavra grega “πολιτεία” ou do latim “politia” poderiam aparentar não corresponder inteiramente com o contexto histórico dos países confucionistas, nos quais a hierarquia desempenhava e ainda desempenha um papel primordial na organização social. No contexto da sua modernização, o Japão teve como um dos seus objectivos a criação de uma ordem de segurança pública à semelhança do Ocidente. É nesse sentido que devemos perceber as nuances hierárquicas de “vigilância” ou “alerta” que se somam na tradução japonesa ao conceito ocidental de “polícia”. É igualmente possível que os japoneses tenham importado a ideia de polícia da palavra “inspection” em inglês ou mesmo do latim “vigil”, sendo essa possibilidade considerada quando se pensa no caso comparável do tailandês, que tem, na sua tradução do conceito de “polícia”, por sua vez importado do antigo cambojano, as palavras “inspecção” ou “regulação”, que vemos também surgir na época de modernização (ou ocidentalização) da Tailândia. Um outro caso asiático interessante é o dos birmaneses, que tomaram a palavra inglesa “police”, embora haja em birmanês outra palavra para “polícia”, que também significa “corajoso”. Hong Kong e Macau, colónias europeias da altura, tinham há já algum tempo as suas próprias forças policiais à europeia, embora mantendo algumas particularidades. Há bastante tempo que ambos os territórios utilizavam para designar esta força os termos chineses que parecem denominar os equivalentes da polícia ocidental na China antiga. A lei colonial “Police Force Ordinance” de Hong Kong de 1862, que não foi traduzida para chinês clássico na época, foi em contrapartida traduzida para japonês, e sendo precisamente essa tradução que serviu de referência aquando da modernização na Corte Imperial do Japão. Nessa Lei, a palavra polícia foi traduzida para o japonês “巡邏” (jun-ra). Uma pequena nota para aqueles que aprendem chinês: tanto em cantonense como em mandarim, este não se trata do verbo do chinês moderno para “patrulhar”, tendo sido a palavra usada para indicar os patrulheiros japoneses do final da era Edo.
Os dois caracteres chineses “警察” foram usados em Hong Kong, Macau e China como nome oficial para “polícia” apenas no século XX, mesmo apesar de este termo com ambos os caracteres ser já conhecido pelos mandarins da Corte do Império Manchu logo após a sua criação pelos japoneses no século XIX.
Várias polícias inspiradas por um modelo ocidental foram introduzidas no final do Império Manchu, mas nunca foram oficialmente designadas pela palavra japonesa “警察”. No início do século XX, quando a proclamação da jovem república chinesa era ainda muitíssimo recente, o termo “警察” coexistiu durante varias décadas, em Hong Kong e Macau, com os antigos títulos dados às antigas forças de segurança chinesas sob o Império Manchu, pese embora as fortes críticas dos grandes mandarins da China aos danos que essas antigas forças de segurança causaram ao Império. Essa situação perdurou até às primeiras décadas do século passado, quando o termo “警察” (keng chat, em cantonense) foi oficialmente fixado nas traduções chinesas das forças policiais das duas colónias europeias na China, e é assim que o conceito ocidental de polícia foi finalmente instaurado no mundo de língua chinesa. Como se pode constatar, apesar dos esforços dos intelectuais desde os primeiros anos da China republicana até hoje para desierarquizar a língua chinesa tomando o Ocidente como exemplo, o chinês moderno mantêm-se uma língua no seio da qual os conceitos ocidentais coexistem com uma hierarquia confucionista tradicional, ou se vêem até mesmo nela adaptados.
Traduzido do francês por Rita Guimarães
Post scriptum: O historiador americano de origem de Hong Kong, o Professor Ming K. Chan (1949-2018) pediu-me uma vez a assistir às investigações dos historiadores daquela região sobre a polícia de Macau. Nunca cheguei a conhecê-los, mas o Professor Chan ofereceu-me um volume sobre a polícia de Hong Kong, escrito pelos especialistas da história da polícia da cidade, Lawrence Ho e Chu Yiu-kwong. A leitura deste livro parece-me pertinente sobretudo neste momento de controvérsia na região administrativa especial.