O papão além-fronteiras
Na semana passada, o ICC-iCover, um serviço de análise de risco gerido pela associação que reúne as maiores empresas de construção civil da China, emitiu um alerta para um determinado território, recomendando aos cidadãos chineses que evitem protestos, assim como locais perigosos ou congestionados.
Estaria a Associação dos Construtores Civis Internacionais da China (Chinca) a falar de Hong Kong, uma região afectada há mais de dois meses por uma série de manifestações pró-democracia, que em alguns casos têm resultado em actos de violência? Não. O aviso dirigia-se aos turistas chineses e trabalhadores de empresas chinesas em Portugal, aconselhando-lhes cautela, “sobretudo em grandes cidades como Lisboa, Porto, Braga e Faro”.
O motivo para esta sombria recomendação? O estado de crise energética declarado pelo Governo português devido a uma greve convocada por sindicatos dos motoristas de matérias perigosas que deixou centenas de postos de abastecimento sem combustível.
“Neste momento e nos próximos meses”, os chineses devem evitar locais de concentração de manifestações, refere o alerta. Isto apesar de, após uma semana de greve, não ter havido qualquer incidente de nota. Aliás, na última década, apenas em 2016 uma manifestação de taxistas contra a entrada da Uber no mercado português originou actos de violência.
O aviso do ICC-iCover reflecte um dogma do regime chinês – consagrado após o massacre de Tian’anmen em 1989 – segundo o qual todo e qualquer protesto ou movimento organizado é perigoso para a sociedade. Algo que explica não só o controlo policial apertado da população, mas também a ironia do Partido Comunista proibir a formação de verdadeiros sindicatos de trabalhadores e a organização de greves laborais.
O serviço de análise recomendou ainda aos chineses que evitem “áreas tradicionalmente perigosas” e locais públicos movimentados, dando como exemplo templos religiosos e “comunidades negras e ciganas”. Seria suficiente substituir estes grupos marginalizados em Portugal por “uigures e tibetanos” para perceber que o alerta escolheu simplesmente os suspeitos do costume.
Mais do que os alegados riscos de estar em Portugal, o aviso serve como uma sóbria demonstração do racismo descarado que é transversal à sociedade chinesa, afectando não apenas os imigrantes africanos mas até mesmo os chineses de pele mais escura. Além do racismo, os uigures e tibetanos sofrem ainda com a desconfiança visceral que o Partido Comunista tem da religião.
Viver na bolha
O ICC-iCover aconselhou também os cidadãos chineses a respeitar as tradições étnicas, religiosas e culturais portuguesas e a “evitar discutir assuntos sensíveis de cariz social, político ou religioso, de forma a não serem afectados”. A vontade de garantir que os chineses não sejam afectados pelas influências negativas que vêm do exterior não se esgota na Grande Muralha cibernética. Basta ver a televisão estatal ou espreitar as redes sociais chinesas para ter um vislumbre. As organizações estrangeiras estão sempre a “imiscuir-se nos assuntos internos da China”, por exemplo atrevendo-se a criticar as violações dos direitos humanos em Xinjiang. Os governos ocidentais querem é impedir que a China regresse ao lugar que lhe pertence na arena internacional e por isso “inventam” taxas alfandegárias, como fizeram os Estados Unidos. As empresas estrangeiras não param de “insultar o povo chinês”, nomeadamente ao imprimir roupa que dá a entender que Taiwan é um país soberano.
Durante a Guerra Fria, o Partido Comunista tentava desencorajar os chineses de emigrar ou fugir para outros países através de descrições do ocidente capitalista como um inferno marcado pela instabilidade política e exploração das classes desfavorecidas. O guião continua a ser usado, com as notícias sobre o estrangeiro repletas de ataques terroristas, golpes políticos e recessões económicas. Tudo para lembrar aos chineses a sorte que têm de viver num país onde a estabilidade é garantida, seja a que custo for.
Seria fácil reduzir este aviso a um caso isolado de ignorância, mas é muito longe de o ser. A barreira linguística, a falta de contacto com estrangeiros, a censura às redes sociais externas e uma educação nacionalista aliam-se para criar um geral desconhecimento de como é a vida fora da China. Embora os chineses estejam cada vez mais a fazer turismo ou a estudar no estrangeiro, a situação não tem melhorado, até porque Xi Jinping retirou do sistema educativo muito conteúdo com “influências ocidentais”.
Durante décadas, o resto do ocidente troçou da ignorância dos norte-americanos quanto ao mundo exterior, sem pensar bem no impacto que isso teve, nomeadamente na política externa de Washington. Da mesma forma que ainda ninguém ponderou que mundo teremos quando a maior potência económica e política – aquela cujo modelo de desenvolvimento é copiado por outros países e cuja cultura influencia milhares de milhões de pessoas – não for uma democracia capitalista como os Estados Unidos mas sim uma China autoritária.
Foto de destaque: Carlos Paes (www.pixabay.com)