A conquista da História
O filme Never Look Away é uma longuíssima-metragem de época, por vezes aborrecida, que decorre na Alemanha durante e após a II Guerra Mundial. Conta a história de Kurt – quase Kurtz, esse nome que jamais será indiferente a quem mergulhou n’O Coração das Trevas –, um rapazinho com uma sensibilidade especial para a pintura. Enquanto vê a sua família desmantelada entre a perseguição do Estado, a guerra e o desespero mais puro, Kurt vai crescendo para tornar-se no pintor que já se adivinhava. Na então Alemanha Oriental e comunista, ele é dos mais célebres jovens autores de murais socialmente comprometidos, pelo povo e para o povo, a arte pela arte é um exercício estéril, narcisista e perigoso, etc. Kurt segue a cartilha da sobrevivência, apenas até conseguir escapar para a Alemanha Ocidental. Quando a sua fuga e dissidência se confirmam, o aparato estatal apressa-se a fazer desaparecer todos os murais por si assinados. Numa das cenas, dois homens aplicam largas camadas de tinta branca sobre um mural de social-realismo, a foice e o martelo, o trabalho, estamos juntos, camaradas. Ao fundo, o professor de Kurt, que sabe assistir ao inevitável, não consegue esconder alguma comoção ao ver destruir os frescos do seu mais brilhante aluno. E paramos aqui, neste frame, para constatar mais uma vez o que já sabemos: os Estados, feitos de homens e mulheres, têm uma apetência natural para controlar a sua narrativa, o passado e, claro, o futuro – Orwell sabia do que falava. Agora, falemos da China.
Há sete anos visitei pela primeira e única vez a Praça de Tiananmen, em Pequim. Era mais jovem e talvez, apesar de tudo, mais bem-disposto com as coisas da vida.
Eu sei que parece estranho mas, neste dia em que visito Tiananmen pela primeira vez, a praça está fofinha. Ele é casais de namorados em intensas declarações de amor, roulottes com comida (farturas, churros?), crianças que brincam e riem, ecrãs gigantes que mostram vídeos elucidativos da grandeza e desenvolvimento equilibrado desta excelsa nação. Ninguém diria que há pouco mais de duas décadas se matou e aviou porrada por aqui à tripa forra.
Tiananmen, neste dia cinzento, é a feira popular de Pequim. Como uma bússola, um trabalhador migrante roda sobre si mesmo e aponta-nos: Mausoléu do camarada Mao de um lado, Cidade Proibida do outro; Museu Nacional da China para aqui, Grande Palácio do Povo para ali. Os trabalhadores migrantes são às centenas acocorados no chão de Tiananmen. Para eles, a praça é como uma grande sala e nós, os estrangeiros, somos o filme que passa na TV. Eles vêm ver-nos de perto, fotografam, oferecem cigarros. Há qualquer coisa que não bate certo entre os vídeos de prosperidade nas telas e o ar desgraçado destes homens que fumam agachados.
Em Tiananmen também há musiquinha. Ao fundo, o retrato do camarada Mao olha as belas mulheres que por aqui passeiam saltos altos e roupas caras – é a praça em versão passarela, a mostrar a China comunista que é também a maior consumidora de produtos de luxo, a China que rima com Louis Vuitton, Versace, Gucci, Cartier, Armani, Hermes ou Dior.
Eu quero perceber o peso e a austeridade da praça de Tiananmen, mas até o Largo do Senado, em Macau, me parece mais repressivo, pela impossibilidade de dar cinco passos sem tropeçar num turista. O partido fez um trabalho muito jeitoso, não varreu qualquer lembrança do 4 de Junho de 1989 para debaixo do tapete. Antes arrancou os tapetes, queimou tudo, apagou os vestígios. Quem acha que o senhor Ahmadinejad e o Irão sabem alimentar carinhosamente o revisionismo histórico, tem de vir aqui.
Um dia, num 4 de Junho mais ou menos distante, talvez jovens casem em Tiananmen. Jovens netos ou bisnetos dos homens e mulheres que morreram e sofreram em Tiananmen. Nesse dia, o camarada Deng Xiaoping terá a certeza de que fez bem em mandar carregar sobre a turbamulta que, imagine-se, pedia uma China democrática. E a praça, assim vestida de branco e imaculada como a virgem que guarda o sangue do pecado, será ainda mais fofinha.
Hoje, quando se cumprem 30 anos sobre o massacre de Tiananmen (e sim, à falta de melhor revisionismo, a palavra correcta é mesmo massacre), quando o Exército de Libertação Popular avançou com balas e tanques sobre manifestantes pró-democracia desarmados, matando não se sabe ao certo quantas centenas ou milhares de pessoas, releio o meu curto texto de 2012 pelo meio de uma total imersão em testemunhos de estudantes e antigos militares, artigos de opinião, reportagens de Maio e Junho de 1989 e toda uma série de materiais que, no mundo livre apesar de defeituoso em que acredito, posso consultar e ler, para depois pensar e sentir, sentir o que aconteceu em Tiananmen de um modo que me custa até racionalizar.
De tudo quanto li, destacam-se um artigo de opinião de Louisa Lim, autora de The People’s Republic of Amnesia, e outro de Wang Dan, antigo líder estudantil em Tiananmen. Este último por ser um comovente relato na primeira pessoa de um homem que sofreu e continua a sofrer as consequências do 4 de Junho de 1989. O texto de Louisa Lim é intrigante por propor um novo olhar sobre o modo como a República Popular da China tenta controlar a narrativa do seu passado: já não se trata apenas de defender que o governo agiu em conformidade, para travar um movimento contra-revolucionário; ou de alegar que as coisas não aconteceram bem assim e que o ocidente tenta manipular os eventos de Tiananmen para castigar a China e exercer a sua influência no país. Agora, questiona-se o valor do próprio conhecimento. Porque é que temos de saber o que aconteceu em Tiananmen em 1989? Isso é importante para nós? Não vai prejudicar a nossa sociedade harmoniosa? Para quê falar disso? São algumas das interrogações que Louisa Lim ouviu da boca de uns quantos jovens chineses de entre os mais de 650 mil que estudam no estrangeiro. A China, defende a autora, está a ensinar as novas gerações a olhar a História enquanto ferramenta utilitária. E isso, acredita, é ainda mais poderoso do que a própria censura.
Hoje, 4 de Junho de 2019, quando acordei sabendo que iria escrever este texto, tinha apenas uma frase a repetir-se na minha cabeça: Tiananmen é demasiado grande. Tiananmen é demasiado grande. Tiananmen é demasiado grande. E é mesmo, em muitos sentidos. Mas acima de tudo é demasiado grande para ser esquecido. Por respeito a todas as vítimas, a todos os que morreram, a todos os que ainda hoje vivem no exílio, por respeito à verdade – não podemos esquecer. Como a tia alemã do jovem pintor Kurt lhe diz pouco antes de ser levada pelo partido por alegada demência, Never look away. Everything that is true is beautiful.