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Será isto identidade?

May 27, 2019

Será isto identidade?

O romance, ou novela, de Carlos Morais José, O Arquivo das Confissões. Bernardo Vasques e a Inveja vai sendo alvo de uns quantos e excelentes ensaios, leituras críticas, entrevistas, notícias e acabou recentemente de ser traduzido, e bem, para língua inglesa por David Brookshaw com um delicioso e inteligente prefácio de Glenn Timmermans (Macau, Março de 2019).
Haverá então mais alguma coisa a dizer? Sim, talvez uma conversa mais privada. O que me anda na cabeça, desde que o li de rajada, com entusiasmo, agrado e prazer, é uma forte sensação de pertença, de identificação, de familiaridade, talvez até de cumplicidade. E de regozijo mesmo, por sentir viva, promissora e possível uma ficção renovada na literatura de Macau em língua portuguesa.
Uma literatura que Macau penetra e integra não como cor exótica, antes como pertença de um percurso vivencial e cognitivo norteado pela eterna viagem, física e inquiridora, e consequente reterritorialização. Reterritorialização essa veiculada pela indagação histórico-cultural que escrevemos, também ela ponto de partida para uma viagem/diálogo reflexivo pela própria identidade individual e colectiva.
E aqui as leituras são muitas, como o são os elementos e fragmentos que se evocam e ironizam; tantos os textos, as filosofias e as narrativas que se convocam, questionam e, por vezes, se reinventam; os recursos e mecanismos cognitivos que se colocam ao serviço da escrita que a tornariam passível de escalpelização quase estratigráfica, ou talvez melhor, estimuladora de percursos de leitura, de reconhecimento ou de identificação diversos. E isto sem se perder o âmago da narrativa, da ficção bem imaginada e bem conseguida.
Pondo de parte a intertextualidade, poderia optar pela ossatura da história, o seu esqueleto, ao fim e ao cabo um ensaio/experimentação sobre a inveja (aquela que é bem a última palavra de Os Lusíadas, aí móbil da acção digna de exaltação) onde o autor recorre ao e beneficia do seu olhar de antropólogo; exercita o actor que também gosta de ser, e desinterioriza a própria vivência, ou observação participante se preferirmos, porquanto a inveja ― tema que de há muito o persegue ― pode impedir a fama, a fruição do belo, e, quiçá, até inibir o acto criador.

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.

como poderia ter dito Camões aos seus contemporâneos, segundo Jorge de Sena (Metamorfoses, 1963), ou antes talvez este aos seus.

Mas, já que a escolha é entre ser divino ou ser nada, como afirma Carlos Morais José [p. 83], não tanto num projecto de emulação, talvez mais num de inscrição para a posteridade, então:

Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome.
E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.

[…] (Jorge de Sena, ibidem)

Prefiro um outro diálogo, talvez de leitura mais restrita: o da identificação de um corpus histórico-cultural que integra o legado e o imaginário de Macau que, enquanto agentes culturais, ajudámos a desvendar e a fixar, e que Autor traz para o texto ficcional com fluidez e pertinência, chamando ao diálogo um grupo de muito poucos.
Corpus esse também construtor da nossa identidade cultural a Oriente, de reterritorialização num espaço referencial, que alimenta a nossa escrita, a nossa reflexão, mas também a nossa imaginação como aqui o prova a escrita ficcionada de Carlos Morais José. Bebeu ela no muito que leu, pesquisou e escreveu na compreensão da existência, sobrevivência e dimensão de um lugar como Macau, cruzamento de rotas, de mercadorias, de ideias, de sonhos e de gentes. De percursos os mais díspares e inverosímeis, não só os da chatinagem e da soltura, mas também comuns, que lhe inscreveram marcas e sulcos, que as pedras e a memória registam, ou que simplesmente se intuem, acrescentando-lhes uma nova dimensão. E os mitos e os fantasmas que delas ecoam escondendo tesouros e documentos secretos, iniciáticos, pérfidos e estratégicos, de um poder e de um saber superiores, que se esvaíram com Kangxi e os seus jesuítas; as convulsões provocadas pela incompreensão dos ritos personificadas em Tournon. E os outros que vagueiam pelo Cemitério Protestante ou foram imortalizados por Chinnery.
Morrison ― e com ele um outro projecto evangelizador ― dialoga, porque acabam por coexistir num mesmo espaço, com alguém que tanto poderia ser um P.e Manuel Teixeira ou talvez mais até um P.e Rodrigo da Madre de Deus, ou um misto dos dois. Dinamene mutsai é atirada, sucumbindo inglória, para o sórdido submundo que preenche o lado oculto de pérolas como Macau ou as esplendorosas, exóticas e sofisticadas capitais do luxo asiático. O missionário, que oscila entre a candura e a loucura, planando acima da realidade, perece, abandonado ao destino, injustiçado pelos companheiros, com o sonho por cumprir tal como Francisco Xavier.
O arquivo das confissões, que possibilita a trama, daria por si só um tratado, mas não deixa de apontar o dedo para a existência de manuais das confissões, de róis dos confessados, de visitações, tudo matéria de que se alimenta a Teologia Moral e o casuísmo cristão (por ex: os célebres casos de consciência) com que se estudam, controlam e dominam almas, impõem credos e torturam as ditas consciências.
Para tudo terminar (quando de facto já o estava) no apoteótico incêndio de S. Paulo. Opção demasiado óbvia em termos ficcionais em que a obra é tão rica, mas coerente na inscrição do corpus histórico-imaginário de Macau, sem deixar de aumentar a dimensão cénica, que já tivera momentos altos com a sublevação a bordo, ecoando a história trágico-marítima, ou com a passagem do Bojador, glosando a fixação da epopeia por via camomeana ou talvez mais pessoana.
E, acima de tudo, a sempre presente aventura de auto-reflexão e de auto-representação para a inquirição mais profunda sobre os limites da moral, o sentido da vida e a busca do lugar que a habita. Ao fim e ao cabo, o que fazemos aqui, expatriados, sem identidade, metamorfoseados:

[…] Não invejo a tua sorte, peregrino. Jamais encontrarás santuário, jamais a tua fome se aplacará ou a tua sede se há-de saciar. Farás o mundo e o mundo far-te-á a ti. Se regressares serás outro. Perderás o pouco da identidade que te resta. […] Viverás em muitos países e nenhum deles realmente entenderás. […][p. 70].

E não foi mais do que esse o percurso de Bernardo Vasques na sua metamorfose bizarra:

[…] um ser que se transmuta em palavras de outrem e assim se perde de si mesmo para sempre. [p. 134],

para acabar ninguém [p. 140].

E o que fica nesta irremissível tristeza de todos os exílios?
Talvez o arquétipo, a sombra de quem, sem nunca ser identificado, tutela e inscreve o nome na obra, e cujo génio, que, de facto, todos invejamos, repousa, aqui mesmo ao lado, no santuário pan-lusitano que nos legou Camilo Pessanha (“Macau e a Gruta de Camões”, Macau, 7 de Junho de 1924).

Macau, 26 de Abril de 2019

 

Sobre a obra

Título

Arquivo das Confissões - Bernardo Vasques e a Inveja

Autor

Carlos Morais José

Ano

Outubro, 2016

Edição

Livros do Oriente

Língua

Português

167 páginas

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