A benção e os calões
A oportunidade de ter um horário 996 (das nove da manhã às nove da noite, seis dias por semana) é “uma benção” e sem ela a economia chinesa “muito provavelmente perderá a sua vitalidade e a sua dinâmica”. As palavras são de Jack Ma, bilionário e fundador do Alibaba, num discurso feito há algumas semanas a trabalhadores do grupo, que inclui a plataforma de comércio electrónico Taobao e o sistema de pagamento Alipay. O comentário, feito numa reunião interna mas partilhado na conta do Alibaba na rede social chinesa Weibo, rapidamente criou polémica na Internet.
As críticas alastraram a outras empresas chinesas da área da tecnologia, como a gigante do comércio electrónico JD.com Inc. Afinal, um dia depois de Jack Ma, também Richard Liu, o fundador da JD.com, defendeu no seu WeChat que anos de crescimento exponencial levaram a um aumento do número de “calões” na empresa. Isto numa altura em que a JD.com cortou nos salários dos estafetas e, segundo fontes, planeia despedir até oito por cento dos seus 178 mil trabalhadores.
Os protestos contra o 996 têm-se concentrado em plataformas de partilha de código de software. Numa delas, a GitHub, por exemplo, o fórum chamado “Trabalha 996, vai parar às urgências” tornou-se repentinamente o mais popular, com pessoal a criar uma lista negra das empresas tecnológicas chinesas que exigem trabalho extraordinário. Começou também a circular nas redes sociais um vídeo em que um programador de um fornecedor do gigante das telecomunicações Huawei desmaia alegadamente devido a exaustão.
Este tipo alternativo de activismo laboral cibernético foi a solução encontrada para contornar o receio desmedido que as autoridades chinesas têm dos movimentos de massas. Algo que explica, por exemplo, a reacção musculada do Partido Comunista ao ironicamente prender dezenas de estudantes marxistas por apoiarem protestos de trabalhadores de indústria manufactureira na cidade de Shenzhen, no Verão passado.
A polémica do 996 obrigou mesmo o jornal estatal chinês Diário do Povo a publicar um artigo de opinião no qual relembrava que o 996 viola as leis laborais chinesas, que limitam o horário de trabalho a 40 horas semanais. O problema é que o trabalho extraordinário – frequentemente não remunerado – se tornou uma parte integrante da cultura laboral chinesa, visto como uma prova de lealdade e dedicação à empresa.
Tal como no Japão, onde este tipo de cultura levou ao surgimento do “karōshi” ou morte por excesso de trabalho, as empresas chinesas nunca põem por escrito exigências como o 996, tornando assim muito difícil aos trabalhadores defenderem os seus direitos. E num país onde a estabilidade – pelo menos estatística – do crescimento económico se tornou um dogma, as autoridades facilmente encontram incentivos para uma política laboral permissiva, que inclui fazer vista grossa aos excessos de trabalho extraordinário.
Sonho adiado
Os média estatais chineses aproveitam toda e qualquer oportunidade para apontar o modelo centralizado de desenvolvimento como o motor que levou o país a tornar-se uma potência económica. Mas o progresso deveu bem mais aos extraordinários sacrifícios feitos pela população. Após os horrores da ocupação japonesa, da guerra civil e, mais tarde, da Revolução Cultural, a abertura económica lançada por Deng Xiaoping há 40 anos encontrou uma geração disposta a tudo para não só nunca mais passar fome mas também para garantir um futuro melhor para os seus filhos.
E são esses mesmos filhos que agora se revoltam contra um futuro que – apesar do omnipresente slogan do presidente Xi Jinping, “Sonho Chinês” – parece muito parecido com o passado, nomeadamente com longas horas de trabalho. A diferença é que um curso universitário deixou de ser garantia de um bom emprego e, para quem vive numa das principais cidades chinesas, os salários já não chegam para comprar uma casa.
No ano passado uma amiga da minha esposa deixou um emprego na função pública chinesa – o tipo de posição que teria sido o sonho da geração dos pais dela. “Tínhamos de trabalhar por turnos e muitas vezes até às dez da noite. Mesmo no período do Ano Novo Lunar, estava de serviço quatro ou cinco dias”, disse-me . Apesar da situação financeira da família não ser ideal, ela acabou por se demitir, escolhendo passar mais tempo com a filha pequena.
Numa altura de desaceleração visível do crescimento económico da China, os patrões estão a exigir mais horas e maior dedicação, seja através do receio do despedimento ou da empresa fechar portas, seja através de promessas de benefícios futuros. Por outro lado, as autoridades continuam a tentar promover o consumo interno, nomeadamente para tornar a economia chinesa menos dependente do exterior e menos vulnerável a choques como a guerra comercial com os Estados Unidos.
Aí reside a contradição que terá de ser resolvida. Quem trabalha 70 horas por semana, como no caso do 996, não tem tempo livre para comprar mais.