O lugar onde pertences pode ser mesmo aqui
“Muitos gays acabam por sucumbir à pressão e manter um casamento tradicional e doloroso com o sexo oposto”, escreve Yao T, activista dos direitos dos homossexuais na China, num texto publicado em chinês e inglês na Babel Magazine. Neste testemunho, traduzido para português pelo Extramuros, Yao revela como a homossexualidade e doenças como a sida são ainda temas tabu na sociedade chinesa.
Yao, T*
Num piscar de olhos, faço 40 anos. Eu tinha um sonho perfeito para o futuro, mas mais de metade da minha vida passou, o sonho revelou-se vago. Eu era ambicioso, embora ambíguo, hoje sou determinado, persistente. Olho para o passado com sentimentos contraditórios, talvez esteja mais maduro, mais velho. Mas não me arrependo de nada.
Eu nasci nos anos 1980, no seio de uma típica família de assalariados, numa pequena cidade do sul da China. Aí, escola e família procuravam estimular-nos com o lema: “trabalhem arduamente, mudem o vosso destino”.
Como muitos outros jovens naquela altura, eu esperava entrar numa boa universidade, encontrar um emprego decente, constituir família, procurar o meu lugar no mundo. Formei-me, mudei-me para Pequim à procura de novas oportunidades, encontrei trabalho numa grande empresa e, mais tarde, passei o exame de admissão da função pública e fui trabalhar para o governo. Desde aí, tenho tentado integrar-me. Na escola ou no trabalho, procurei zelosamente parecer-me com as pessoas à minha volta.
Para a geração mais velha, transitar de uma das 500 melhores empresas do mundo para um trabalho no governo, ou seja, assegurar um emprego estável, significa que chegou a hora de casar, ter filhos, garantir a continuidade da família. Eu sorria sem vontade perante a curiosidade dos meus colegas, família e amigos sobre a minha vida amorosa. No fundo, porque sabia que por mais que me esforçasse, nunca faria parte dessa maioria comum e exemplar. Não existia espaço para mim nesta sociedade, eu não devia existir, porque eu sou gay.
O ambiente no trabalho, repetitivo e opressivo, frustrava-me, e viver escondido atrás de uma máscara deixava-me esgotado, física e psicologicamente. Acabei por largar o meu emprego no governo em busca de uma nova vida. Vagueei por aí, caminhada solitária, não que tivesse qualquer ambição, mas estava em busca de um lugar de aceitação, embora não fizesse a mínima ideia onde procurar.
O que nunca eu imaginei era que a morte fosse esse lugar. Aos 29 anos, adoeci gravemente. Vezes sem conta, seringas foram introduzidas nas minhas veias, seguiram-se exames infinitos: testes, raios-x, estudos da carga viral. A única coisa que me restava fazer era esperar ansiosamente pelo momento em que a morte me viesse buscar. Pessoas infectadas com o VIH (Vírus da Imunodeficiência Humana) são vistas como infames, indignas de compaixão. Se estivéssemos condenados à morte por cada luta que travássemos, então eu só queria poder morrer num acidente de viação, e talvez ser digno da misericórdia e do perdão das pessoas.
Eu costumava acreditar que o mais grave na vida era vivê-la sem qualquer objectivo. Depois apercebi-me que não há maior dor do que morrer a caminho de um sonho. A minha vida estava apenas a começar e eu já tinha de me despedir dela. O tal sonho não passava de uma ilusão. O duro exame de consciência que fiz ao longo desta jornada contra a morte foi importante para reflectir sobre o passado. A pessoa a quem foi diagnosticada esta doença mortal, e que vive com medo, ansiedade, remorsos, tem a certa altura da vida de fazer uma escolha crucial: ser ou não ser? E o que fazer com o resto do tempo?
Comecei a tomar medicação anti-retroviral, a resistir aos efeitos secundários neurológicos e digestivos. A insuficiência renal, a insuficiência hepática e a acidose láctica eram os meus maiores medos. Durante muito tempo não consegui comer nem dormir bem, andava exausto, magro. O meu peso caiu para os 50 quilos, e não podia contar àqueles que se preocupavam comigo o que se estava a passar. A única coisa que podia fazer era segurar um sorriso, dizer “estou bem”. Durante o dia, dava o meu melhor no trabalho, mas quando chegava à noite, o meu corpo tornava-se num campo de batalha de drogas e vírus.
Comecei a ler sobre o VIH e a sida, e descobri um mundo novo – tão próximo, embora pensemos que seja um lugar remoto. Foi assim que fui percebendo que existe um grupo vulnerável de pessoas que vive à margem da sociedade, mas que não desiste de se ajudar mutuamente. Encontramos estas pessoas comuns em todo o lado, são agricultores, trabalhadores migrantes, idosos de cabelo branco, crianças inocentes. Alguns optam pelo suicídio, outros estão a morrer sozinhos nos cuidados intensivos, há quem procure refúgio na própria degradação, quem lute contra a doença e o estigma, e quem aproveite o tempo de vida que lhe resta para ajudar os outros.
A organização não-governamental “The Home of Red Ribbon”, fundada num hospital, ilumina silenciosamente o caminho dos doentes infectados com sida. Disponibiliza abrigos aos pacientes que chegam à procura de tratamento; oferece comida a quem está sozinho e se encontra em situação vulnerável; escreve palavras encorajadoras para que as pessoas não se esqueçam de tomar a medicação; fazem exames; lidam pacientemente com preocupações, medos. Tudo isto permite a quem vive na escuridão entender o poder da entreajuda, resgatar a confiança na vida.
O fundador da organização também é seropositivo e quis dedicar a vida a ajudar o próximo. Estar às portas da morte, fez-me perceber o quanto eu podia aguentar. A história da ONG “The Home of Red Ribbon” ensinou-me que o lugar onde vais encontrar aceitação não está necessariamente longe. Talvez esteja, neste momento, aqui mesmo. Só precisas de lhe dar forma com as tuas próprias mãos.
Eu vivo numa pequena cidade no Sul do país. Anos de atraso económico e cultural fazem com que os residentes levem vidas monótonas, convencionais. Para quem aqui vive, a melhor forma de mudar é partir, procurar trabalho nos grandes centros urbanos. Já os que têm de ficar, resta-lhes resistir. Ao longo de uma vida de repressão, a comunidade homossexual que aqui reside, habituou-se ao desprezo, dormência, indiferença. Eu sou gay e tenho a clara percepção que não há espaço para os homossexuais nestas áreas subdesenvolvidas, fechadas e conservadoras. A falta de informação e a discriminação permanente faz com que esta comunidade esteja condenada a uma vida dupla na escuridão. Muitos gays acabam por sucumbir à pressão e manter um casamento tradicional e doloroso com o sexo oposto.
Esta cidade pequena e conservadora é apenas um microcosmo de milhares de outras regiões subdesenvolvidas da China. Para haver mudanças, há que desafiar as mentes mais fechadas e conservadoras. A educação é fundamental, e é através dela que podemos formar novos valores.
Tenho a esperança de conseguir divulgar valores livres e inclusivos, de conduzir ideias através da minha experiência profissional e conhecimento de línguas. Para sobreviver num ambiente de recursos extremamente escassos, ser aceite pela população local e participar numa missão que diz respeito ao bem-estar da população, temos de experimentar uma variedade de métodos flexíveis.
Acabei por juntar uma pequena equipa de caridade para organizar actividades de intercâmbio cultural entre locais e voluntários daqui e do estrangeiro. Temos organizado eventos centrados na diversidade e na inclusão. Nesta plataforma, temos a capacidade para entender ideias diferentes, ouvir grupos socialmente desfavorecidos, criar um ambiente de tolerância, compreensão, amizade. Temos percorrido um longo caminho: passámos de um espaço temporário a um permanente; do registo legal ao desafio da sobrevivência; do trabalho solitário ao trabalho com uma equipa de voluntários; e gradualmente, da sombra ao conhecimento público. Apesar do percurso espinhoso, acho que comecei a entender o objectivo e sentido da minha vida.
Talvez eu não esteja aqui no dia em que a comunidade gay seja plenamente compreendida e aceite pela sociedade. Mas eu tive a felicidade de ter nascido neste mundo, e espero, sinceramente, deixar a minha contribuição para a promoção da inclusão social, do progresso e aceitação.
* tradução parcial do texto original para português. Para receber a revista Babel na China, incluindo em Macau e Hong Kong, enviar email para: build@pyramidofbabel.org