A minha palavra é a única coisa de que realmente preciso
Numa noite qualquer de Março de 2014, eu estava muito atarefado (na verdade, esmagado) a preparar mais uma edição do Festival Literário de Macau. Lembro-me de entrar no Teatro D. Pedro V – sim, esse lindinho pintado a verde seco e construído em 1860 que é o mais antigo teatro de estilo europeu na Ásia Oriental – e de ver essa mulher de cabelo curto fumando um cigarro, sentada no chão da cafetaria que então tentávamos recuperar de anos e anos de abandono. Essa mulher era Charlyn Marie Marshall, também conhecida por Cat Power, dona de uma voz que desde o começo dos anos 90 nos vem enfeitiçando e de uma atitude que eu lembrava bem de um concerto no Coliseu de Lisboa. Ela era, afinal, The Greatest, e estava ali sentada com a gente.
Passaram cinco anos e, nos entretantos, Cat Power pôs-se a cantar assim com Lana del Rey:
I’m a woman of my word, now haven’t you heard?
My word’s the only thing I’ve ever needed
I’m a woman of my word, now you have heard
My word’s the only thing I truly need
Hoje, Dia da Mulher deste estranho ano de 2019, acordei para escrever e pus-me a escutá-la sem qualquer intenção de que a sua música fizesse parte do que contava alinhavar. Mas depois… Depois percebi que Cat Power cantava exactamente aquilo que eu tentava narrar, a história de mulheres, ou de uma mulher, de uma mulher chinesa, que vive por este lema: A minha palavra é a única coisa de que realmente preciso.
De todas as escritoras chinesas que tive a felicidade de conhecer, nenhuma teve um impacto tão forte em mim quanto Yan Ge. Pois sim, a beleza, já sei. Yan Ge é bela, não nego, mas a sua beleza nada tem de convencional. Yan Ge é natural de Chengdu, Sichuan, cidade de pandas e de comida muito picante que em podendo o leitor deve fazer por visitar.
Cinco letras: Yan Ge. Chegou a Macau com uns olhos muito grandes e muitos negros, uma cara muito redonda como se a lua, um sorriso que guardava uma certa infantilidade e a convicção de que nunca subiria ao palanque para falar ao público sem um copo de vinho. Foi a única autora que fez disso regra. Com outros escritores e amigos, passámos as noites seguintes à conversa. Eu sabia que ela tinha sido uma criança prodígio nascida entre académicos e poetas, que começara a publicar artigos aos 10 anos, que aos 17 era já uma sensação literária na China, que estudara nos Estados Unidos, que a revista People’s Literature a considerara uma das 20 jovens vozes literárias chinesas destinadas a grandes coisas. Não sabia que ela acabara de casar, que planeava mudar-se para a Europa, onde agora vive, e continuar a escrever levada por esses redemoinhos de vento irlandês que ela já confessou desorientarem-na.
Impressionou-me sempre a confiança de Yan Ge, uma miúda que começara a escrever histórias de espíritos e fantasmas e que, àquele tempo, migrava para uma ficção dita mais séria com a segurança de quem atravessa a soleira da mesma porta todos os dias. Era 2015 e ela já escrevera, em chinês, The Chilli Bean Paste Clan, livro entretanto traduzido para francês, alemão, inglês e outros idiomas, e que recentemente recebeu um Pen Award. Ou seja, Yan Ge sabia o que fizera e o que estava para vir.
Nicky Harman, notável tradutora de chinês que também ajudei a trazer a Macau, foi a responsável por verter para a língua dos Monty Python The Chilli Bean Paste Clan, uma saga familiar situada em Sichuan, numa pequena cidade imaginária, e narrada por uma filha ausente que disseca com humor cortante a vida dos seus familiares e, acima de todos, o pai. Antes de meter mãos à obra, Nicky Harman considerara este ‘apenas’ o melhor livro chinês contemporâneo que estava por traduzir. Yan Ge sabia o que fizera e o que estava para vir.
Recentemente descobri que o seu nome de nascimento, Yuexing Dai, significa, numa tradução minha a partir do inglês, “Caminhando sob a lua e usando a lua como chapéu”. Ficámos amigos, eu e Yuexing Dai, e tempos depois voltámos a encontrar-nos em Nova Iorque. Eu regressava a Macau vindo da Feira do Livro de Bogotá, ela estava por lá para uma conferência com Yu Hua e outros autores no China Institute. Conversámos muito durante esses dias, demos longos passeios por Manhattan, jantámos num restaurante grego em Tribeca, encontrámo-nos com Lolita Hu, amiga e autora taiwanesa que me deu o prazer de poder apresentá-las, e com Jeremy Tiang, talentoso autor e tradutor de Singapura; atravessámos o Hudson e subimos aos terraços da casa de uns seus amigos chineses de onde se avistava um pedaço da cidade.
Conhecer Yan Ge moldou a minha percepção do que é ser escritora na China, mas também do que é ser mulher na China para alguém da minha geração. Ela nasceu em 1984, como eu, durante o período em que a política do filho único, introduzida em 1979, vigorava. Foi um tempo em que ter um filho homem era a prioridade, uma longa noite para se nascer e ser mulher na China, que ainda não acabou. Agora, Yan Ge, que sempre quis mais que tudo fazer a sua mãe orgulhosa, é ela mesma mãe. Foram as suas palavras e o seu talento com as palavras que a tornaram forte e confiante como hoje é.
Em Nova Iorque, Yan Ge disse-me algo que nunca esquecerei e que aqui partilho pela primeira vez, esperando que me perdoe a inconfidência. Falávamos sobre livros e literatura quando ela me encarou do fundo daqueles olhos tão negros e tão difíceis de decifrar e me disse: “Sabes, eu vejo-me como uma espécie de Tolstoi.” Eu não consegui conter uma valente gargalhada. Ela pôs-se toda séria. Não estava a brincar.
António Graça de Abreu
Excelente, meu caro Hélder.