Ma Jian: “O mundo totalitário profetizado por Orwell, há muitos anos, é hoje real na China”
Ma Jian olha a China de longe. De Londres, onde vive exilado. No Festival Literário Internacional de Hong Kong, o escritor revelou que é esse distanciamento que lhe permite ter uma visão mais clara sobre a realidade do país. Forte crítico do regime de Pequim, Ma afirmou perante uma plateia cheia que “o mundo totalitário profetizado por Orwell, há muitos anos, é hoje real na China”.
A ausência de Ma Jian no Festival Internacional Literário de Hong Kong pareceu por momentos quase certa. Depois de ter cancelado as duas sessões de sábado do autor chinês, o Tai Kwun – Centro para o Património e a Arte, onde decorreu o festival, voltou atrás e restabeleceu o programa literário. “Confrontados com a possibilidade destes eventos não se poderem realizar por completo, reconsiderámos a nossa posição”, referiu o porta-voz daquele espaço.
Uns dias antes, o director do Tai Kwun justificava o cancelamento dizendo que o centro não servia de plataforma “para promover interesses políticos”. Ma Jian, que vive em Londres, respondeu no Twitter que iria participar no festival como romancista e não como político. “Mas quem já me leu, sabe que os meus livros são profundamente políticos”, acrescentou.
Apesar da mudança de posição do Tai Kwun, a participação de Ma Jian no festival era na sexta-feira ainda uma incerteza. O cancelamento de eventos artísticos e a recusa da entrada de jornalistas, escritores ou activistas naquele território, nos últimos tempos, levantavam dúvidas quanto à vinda do autor, forte crítico do regime de Pequim.
Numa das primeiras declarações sobre o caso à comunicação social, já em Hong Kong, Ma referiu-se à existência de uma “mão invisível” a controlar as suas aparições públicas.
“No futuro, provavelmente os vossos filhos terão de ler na escola o pensamento de Xi Jinping”
Sábado. Sala cheia na apresentação da mais recente obra de Ma Jian, “China Dream”, uma sátira ao “sonho chinês”, ambição do presidente Xi Jinping de restaurar a grandeza do país. Em sete capítulos, o romancista traça a desintegração psicológica de um líder de província, Ma Daode, assombrado por pesadelos do passado.
Com capa do artista dissidente Ai Weiwei, também a viver fora da China, o romance tem sido comparado aos trabalhos de George Orwell na descrição de um regime autoritário. Questionado durante a sessão sobre a influência do autor de “1984” neste mais recente livro, Ma Jian afirmou que “o mundo totalitário profetizado por Orwell, há muitos anos, é hoje real na China”.
Ma fez ainda um paralelismo entre os dias de hoje e o período conturbado da Revolução Cultural (1966-1976). A repressão e a propaganda, assumiu, continuam a fazer parte do dia-a-dia do país. “Se ignorarmos a história, viveremos algo ainda mais terrível”, afirmou perante a plateia.
Sobre a situação em Hong Kong, onde viveu durante vários anos, Ma Jian referiu que o controlo de Pequim “já está a ter impacto” na região: “No futuro, provavelmente os vossos filhos terão de ler na escola o pensamento de Xi Jinping””, notou.
Proibido de regressar a casa
Responsável por seis romances focados (e censurados) na China, Ma Jian está proibido de entrar no país desde 2011. No entanto, o escritor admite que é este distanciamento que lhe permite ter uma visão mais clara sobre o que se passa na nação asiática. “Se vives lá e te habituas àquelas coisas (decisões políticas), então não consegues reflectir sobre elas”, disse durante o festival literário, em resposta ao EXTRAMUROS, que perguntou ao autor como é escrever sobre um país que não pode visitar.
Ma nasceu em 1953, em Qingdao, província chinesa de Shandong. Depois de concluir uma viagem de três anos pelo país, que originou o livro “Red Dust”, mudou-se para Hong Kong, que trocou em 1997 por Londres, após a transferência da antiga colónia britânica para a China.