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A favor do vento

May 4, 2018

A favor do vento

Jornalista e escritor, Fernando Sobral tem já obra considerável nos domínios do jornalismo de investigação sobre temas políticos, sociais e identitários, mas também da novela policial e do romance histórico, onde frequentemente revisita Macau, pese embora não manter qualquer relação duradoura com o território. Caso curioso e invulgar de inclusão não artificial de Macau na literatura portuguesa contemporânea, que pula os muros da própria cidade, projectando-a num horizonte bem mais lato de diálogo com a História e com a memória.
Traz-nos agora Fernando Sobral O Silêncio dos Céus que, ao contrário do que nos poderia sugerir uma leitura apressada da nota de apresentação do livro, não é um romance histórico sobre Macau, após o assassinato do governador Ferreira do Amaral (1849) e do desfecho da Iª Guerra do Ópio (1839-1842).
É antes de mais a exploração de uma não história, de uma impossibilidade histórica, pelo que não sei exactamente como a definir, se é que a classificação é necessária.
Ao invés do que lhe é habitual, Fernando Sobral não parte de um facto verídico para ficcionar a sua história. Acaba, antes, por descrever, através de uma novela historicamente bem contextualizada, que faz decorrer em 1851, a impossibilidade de um movimento independentista em Macau.
A inexistência de uma verdadeira situação colonial pela ausência de posse territorial, do que resultava a trilateralidade das sedes de poder, dividido (e constantemente renegociado) entre Macau, Portugal e a China assim o determinava. Se alguma “independência” alguma vez foi formulada para Macau ela assentava indiscutivelmente na ideia de autogoverno, de libertação da tutela intermediária de Goa, no quadro do império português; e de autonomização da ordem imperial chinesa e da esfera mandarínica, como já demonstrei ao perspectivar a questão da autonomia de Macau em termos historiográficos [1].
Aliás, esse sonho utópico acalentado pelo personagem central da novela, Diogo Inácio de Freitas, como resposta ao abandono de Portugal, radicaria muito mais na tradição autonómica setecentista, de fins de Antigo Regime, tutelada pelo exemplo da independência Norte-Americana (1776), do que num quadro liberal.
Perante tal tema, o que nos ocorre de imediato é a pioneira “Revolta dos Pintos” de Goa em 1787, cujo desfecho parece ter inspirado o Autor, e, claro, o caso triunfante do Brasil em 1822, em circunstâncias especialíssimas, visto que já granjeara o estatuto de Reino em 1815 e era um porto franco desde 1808. Caso bem sucedido mas com forte tradição de luta independentista iniciada com a célebre “Inconfidência Mineira” de 1788-1789.
Alimentar tal sonho no contexto de 1851 em Macau seria impossível, mais do que não fosse por completa inviabilidade de autonomia económica, falhados que foram os projectos de um ouvidor Miguel de Arriaga (1776-1824), essa sim conjuntura em que talvez fosse mais plausível conceber tal projecto, aliás bem conhecida de Fernando Sobral que lhe dedicou o conseguido romance O Navio do Ópio em 2007, onde a questão é já levemente insinuada.
Em O Silêncio dos Céus, os personagens e os temas de Sobral são-nos familiares: mercadores abastados, de poder tentacular, com interesses distintos e concorrenciais, não só no negócio mas nos meandros do poder político; velhos marinheiros acumulando experiências e transmitindo histórias e desilusões, o esvaziamento das velhas glórias lusas em terras do Oriente; o padre saído do século, transviado pelas tentações, que paira como a consciência tutelar, o interlocutor, o guia moral de homens aparentemente amorais, capazes de tudo em defesa do seu poder e riqueza, mas também na satisfação dos seus anseios e vinganças. Ingleses vitoriosos, arrogantes e dominantes, cheios da sua verdade e prepotência, de par com elementos de tríades, mas que têm muito de associações fraternais, messiânicas e redentoras politicamente activas, como a “Sociedade do Lótus Branco” no romance, mas que também nos traz à memória a acção e o misticismo dos “Taiping”, liderados por Hong Xiuquan (1813-1864) e o seu Reino Celestial (1850-1864), que tantos refugiados chineses fez aportar a Macau. Figuras escorregadias e quase transparentes (em que o elemento feminino é determinante) mas que lideram a acção porque tudo conseguem, senhores de artifícios e de habilidades mil.
Mulheres sedutoras, seduzidas e abandonadas; o ópio, os coolies, o jogo; a transversalidade de interesses e de alianças, tudo tipos e temas para uma trama que segue a novela policial, matizada com a face oculta destes mundos que se cruzam — padrões religiosos e civilizacionais através dos quais as personagens dialogam consigo próprias —, glosando de forma mais intensa temas e dúvidas desde sempre presentes, ou latentes, na obra de Fernando Sobral, mas que, neste O Silêncio dos Céus, são chamados para o cerne da narrativa. Como que recuperados dos seus “cadernos de notas”, provavelmente algo semelhantes aqueles em que, ao correr dos dias, os sábios chineses (só eles?) vão acumulando provas das suas afirmações, miscelâneas de conhecimentos, curiosidades, temas a explorar, esboços e rascunhos.
É aqui que a verdadeira escrita, quase teosófica, se processa, perscrutando sistemas cosmogónicos e filosóficos; valores morais, éticos e religiosos; mitos e práticas, colocando-os em confronto por vezes, e, acima de tudo, a essência do comportamento humano, o sentido da vida e a sua relação com a natureza, o primado das coisas, ou seja o universo e o divino, em última instância, o eterno diálogo entre o Bem e o Mal (pese embora não detenham a categoria de absolutos).
Personagens e temas transversais nos romances do Autor, que acabam sempre por vir dar a Macau, último reduto onde se projectam e encontram todas as componentes de uma memória colectiva, de uma identidade errante em busca de si própria, todos os anseios, ideais e fantasmas que atravessam o não tempo e o não espaço.
Escrita escorreita e documentada, quase de auto-reflexão, individual e colectiva, O Silêncio dos Céus tem Macau como cenário mas atravessa sobretudo, seja lá ele qual for, o local onde mora a consciência humana.
Fiquemo-nos, pois, com um excerto da obra, para o reencontro final do personagem principal com o espaço mítico, com a ilusão que povoa as nossas memórias, aqui assim revisitada:

O navio, de velas desfraldadas, parecia voar sobre as águas. Vinha direito a Diogo Inácio. […] Diogo Inácio olhou-o, quase hipnotizado. Julgou ouvir uma canção melodiosa, cantada por mulheres jovens que julgou ver a emergir das águas. Via-o agora mais de perto. Era sem dúvida a Rainha dos Anjos. De súbito, o navio guinou para a esquerda e evitou entrar na enseada da ilha. E depois parou, como se ficasse à espera que Diogo se movesse.

Entre o barco e Diogo estava agora um grupo de raparigas, com os seios visíveis, que se agitaram nas águas, sorrindo para ele. Acenavam-lhe, chamando-o para perto delas. Eram sereias, Diogo não tinha dúvidas. Existiam. Eram tão reais como o barco. A forte tempestade, inesperada para aquela altura do ano, anunciara a chegada da Rainha dos Anjos, tal como previra Amável Carrasco. […] Ali estava o barco, imponente e desafiador. Pronto a entregar o seu tesouro nas mãos do português.

Alguém dizia quando olhas demasiado para um abismo, este também olha para ti. […]

Na vida tem de se conquistar o favor do vento. Não podemos esperar que o vento sopre sobre as nossas vidas. Temos de orientar os nossos corpos e a nossa vida seguindo a direcção do vento. […]. O homem tem em si o Céu e a Terra. Resta descobri-los. […].

Nunca tinha visto o futuro tão claro. O sol cegava-o. Por isso caminhou para as águas, rumo ao navio, em busca da fonte da luz. O canto das sereias era cada vez mais claro e melodioso. Parecia que o som o transportava através das águas, como se tivesse asas ou guelras. Vira a luz total. Depois, a escuridão. E a paz celestial [p.164-5].

Pela primeira vez editado em Macau, pela Editora Livros do Oriente, depois de lhe ter dedicado títulos como O Segredo do Hidroavião (2014) e o referido O Navio do Ópio, e de a fazer presente em As Jóias de Goa (2015) e na novela policial L. Ville (2009), todos publicados em Lisboa, merecia este Silêncio dos Céus uma revisão mais cuidada que não lhe maculasse a escrita fluida e a preocupação de rigor que o Autor coloca na sua pesquisa documental.

[1] “Macau’s Autonomy in the Portuguese Historiography (19th and early 20th centuries)”, in Bulletin of Portuguese/Japanese Studies, Vol. 17, December 2008, pp. 79-112. [Efectivamente publicado em Dezembro de 2010].

(foto de perfil da autora de Gonçalo Lobo Pinheiro)

Sobre a obra

Título

O Silêncio dos Céus

Autor

Fernando Sobral

Ano

2017

Edição

Livros do Oriente

Língua

Português

Um Comentário
  1. António Graça de Abreu

    Diz Fernando Sobral: Diogo estava agora um grupo de raparigas, com os seios visíveis, que se agitaram nas águas, sorrindo para ele. Acenavam-lhe, chamando-o para perto delas. Eram sereias, Diogo não tinha dúvidas. Existiam. Digo eu: Sereias, cada um vê o que acha dever ver. E depois constrói quase toda a arquitectura de um romance com o que não existe. Fantasia. Eu gosto mais de pessoas vivas, autênticas. É menos fácil escrever.

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