Contos de Fadas do Mundo do Caos – Memorandum das Pessoas de Macau numa Época Caótica
Contos de Fadas do Mundo do Caos – Memorandum das Pessoas de Macau numa Época Caótica é um trabalho colectivo dos escritores Joe Lei, Eric Chau e Joe Tang e dos ilustradores Lam Ieong Kun, Un Chi Wai e Eric Fok. Antes de serem compilados em livro, os contos desta colecção foram apresentados na forma de duas peças de teatro, que estrearam em 2015 e 2016 em Macau no Teatro D. Pedro V. A iniciativa da Associação Breakthrough e do Instituto Cultural de Macau foi bem acolhida pelo público e as duas peças acabaram por ser adaptadas e apresentadas em livro em 2017. A obra, publicada pela Gusa Publisher de Taiwan, incorpora igualmente elementos de ilustração.
Gostava de apresentar este livro, fazendo a tradução para o português do prefácio de Lei Chin Pang, crítico cultural.
“Numa noite do ano passado, escrevi a seguinte frase no Facebook, “Para viver neste mundo de caos, quantas noites de insónia teremos de aguentar?”
Ao longo dos últimos anos, talvez muitas outras pessoas como eu não tenham conseguido dormir depois de ver as notícias: protestos estudantis na República da China, confrontos no Conselho Executivo de Taiwan, o movimento dos guarda-chuvas, o motim em Mongkok… Houve certamente outros assuntos que me preocuparam, sem que por isso tivesse de sofrer de insónias: ataques terroristas, guerras civis, crises dos refugiados, Brexit, vitória de Donald Trump nas presidenciais, entre outros.
Mas que tipo de mundo podemos nós chamar de caótico? Julgo que não haja uma resposta certa. Se dissermos, porém, que a situação actual é caótica, também não seria exagero nenhum. No mundo de hoje, existem pessoas que se divertem todos os dias, pessoas que andam sempre deprimidas, pessoas que se dedicam dinamicamente a movimentos sociais e também não faltam pessoas que procuram respostas na leitura.
Então, qual é a lista de livros para um mundo de caos?
Que livros devem ser lidos num mundo caótico? Na realidade, podemos recorrer à história, desde a antiguidade até ao presente, e aprender como o mundo se deixou corromper e como a humanidade passou pelo caos; podemos estudar obras de Ciências Sociais e aprender com os estudos dos académicos sobre a realidade, para nos inteirarmos da tendência de desenvolvimento da sociedade moderna; podemos ler atentamente reportagens de fundo, conhecer a complexidade dos incidentes e explorar os motivos por detrás de fenómenos; podemos voltar a ler as obras-primas literárias, pensar, observar a humanidade e reflectir sobre os assuntos mundanos, do ponto de vista dos mestres.
Existe ainda outro tipo de livros que possa dar resposta a este mundo? Que tal uma colecção de contos de fadas com ilustrações?
Temos frequentemente dificuldade em entender os contos de fadas. Consideramos leitura infantil. E temos o mesmo preconceito em relação à ilustração, que julgamos menos profunda do que a literatura.
Todavia, os contos de fadas são ricos em conotação cultural, espelhando igualmente a complexidade de contextos políticos e sociais. Os contos de Grimm, por exemplo, tiveram impacto nos últimos 200 anos, dado que contêm inúmeros elementos associados ao género, à família e à sociedade. A partir de canções folclóricas, os irmãos Grimm queriam construir a cultura alemã, cujas iniciativas tinham uma subtil relação com a dissolução do Sacro Império Romano e o posterior estabelecimento do Império Alemão.
Quanto à ilustração, esta é também considerada um estilo de escrita, que tanto pode estar repleta de significados infantis e educacionais, como pode contar histórias do mundo dos adultos. Em Taiwan encontram-se muitos livros de ilustração que não são leituras infantis, como são os casos das obras do francês Jean-Jacques Sempé e do norte-americano Shel Silverstein. Quanto aos trabalhos de Jimmy Liao, de Taiwan, e de Brian Tse e Alice Mak (ambos criadores da série Porco McDull) de Hong Kong, os assuntos abordados vão muito além dos temas infantis. Diversos críticos de Hong Kong consideram que as histórias do Porco McDull reflectem a interacção dinâmica da sociedade bem como sentimentos colectivos do povo de Hong Kong.
Há dois anos, artistas de Macau responderam à situação actual do território com ilustrações. As cinco histórias de Contos de Fadas no Mundo do Caos – Memorandum das Pessoas de Macau numa Época Caótica nasceram de duas peças musicais de teatro – Contos de Fadas Alternativos e Contos de Fadas no Mundo do Caos – que estrearam no Festival de Artes de Macau de 2015 e de 2016, respectivamente. Os espectáculos, que cruzaram diferentes média, reuniram vários elementos de literatura, ilustração, drama e música ao vivo.
Estas são histórias que contam o mundo, recorrendo à estrutura dos contos de fadas, a enredos absurdos e ilustrações fantásticas. Podem ser consideradas fábulas contemporâneas. Na altura, enquanto eu assistia aos espectáculos, pensei converter as peças em livros para que chegassem a mais pessoas fora do teatro. A publicação desta obra, promovida pela revista Nova Geração de Macau e pela Gusa Publishers, que muito aprecio, é uma colectânea maravilhosa.
As cinco histórias – Guardador de Sonhos, Trabalho Diligente, Fantasma Faminto, Coleccionador e Ciclope – têm diferentes temas e estilos visuais, mas são todas respostas ao mundo do caos. Ao ler esses contos podemos enumerar diversos pares de palavras-chave sobre o caos: memória e esquecimento, consciência e depravação, ganância e ignorância, guerra e distorção, humanidade e insulto à família, heterogeneidade e sugestões honestas mas desagradáveis. Estas palavras tecem a perplexidade sentida nesta época. Por interesse, estamos dispostos a apagar a memória? Por causa do trabalho, estamos prontos a enterrar a consciência? Sob a égide da sobrevivência, aceitamos o facto de pessoas comerem pessoas? No final, o livro apresenta uma pergunta que as pessoas não ousam enfrentar: se dizer a verdade vai transformar uma pessoa numa espécie alienígena, estranha e exclusiva, tu vais carregar a cruz e tornar-te nessa espécie alienígena?
Este livro é leve, termina-se rapidamente. Mas o livro também é intenso, porque as questões levantadas exigem respostas de diversas gerações, sob constantes reflexões e práticas.
Memorandum das Pessoas de Macau numa Época Caótica
Os seis autores destas histórias são de Macau: os três escritores Joe Lei, Joe Tang e Eric Chau e os três ilustradores Un Chi Wai, Eric Fok e Lam Ieong Kun, todos excelentes no trabalho que desenvolvem.
Os leitores de Taiwan podem perguntar como é que pessoas de Macau escrevem uma fábula tão pesada? Hoje em dia, o PIB per capita de Macau já é o mais alto de toda a Ásia. Como é que os autores apresentam um mundo tão sinuoso? Há motoristas de Taiwan que depois de saberem que sou de Macau exclamam: “A vossa terra, Macau, é maravilhosa! O Governo dá-vos dezenas de milhares de dólares de Taiwan anualmente, não é verdade?”. Tenho também amigos taiwaneses que pedem na brincandeira que lhes arranje emprego em Macau. Isto após saberem que os recém-graduados de Macau conseguem um salário base equivalente a uns cinquenta ou sessenta mil dólares de Taiwan, quase o dobro ou o triplo do salário dos jovens graduados de Taiwan.
Para muitos em Taiwan, Macau é um lugar próximo, mas desconhecido. Além dos casinos, das Ruínas de São Paulo e das tartes de ovo de origem portuguesa, pouco sabem sobre Macau. Além disso, os taiwaneses raramente têm acesso às peças de arte ou obras de literatura de Macau. Na verdade, depois de se transformar num mega casino, Macau acumulou riqueza, mas também muitos problemas sociais: o desenvolvimento excessivo do turismo teve um enorme impacto na vida pública; os novos casinos e as novas construções destruíram a paisagem e o património cultural; a indústria lucrativa transformou um grande número de jovens em máquinas, em croupier; os beneficiários da indústria deram o seu melhor no desenvolvimento de uma cidade deformada.
Com este envolvimento no sector do turismo e do jogo, no desenvolvimento económico da China e perante a torrente de globalização, a pequena Macau vê-se desafiada por vários problemas à escala global, apesar da sua reduzida dimensão. Através das histórias de fantasia neste livro, os leitores podem reflectir sobre a situação actual do mundo, ficando também a conhecer os pensamentos e as emoções dos autores. As histórias nunca mencionam o nome de Macau, mas Macau está patente em cada momento. As mensagens transmitidas são igualmente universais.
Da próxima vez que voltarmos a sofrer de insónias devido às turbulências sociais e políticas, talvez o livro Contos de Fadas do Mundo do Caos seja uma boa companhia.”
(Revisão: Vânia Rego)
Sobre a obra
Título
《亂世童話:澳門人給這一輪紛亂世代的備忘錄》
Contos de Fadas do Mundo do Caos – Memorandum das Pessoas de Macau numa Época Caótica
Escritores
Joe Lei 李峻一 , Eric Chau 寂然 e Joe Tang鄧曉炯; Ilustradores: Lam Ieong Kun 林揚權 , Un Chi Wai 袁志偉 e Eric Fok 霍凱盛.
Sobre autor do prefácio:
Lei Chin Pang (李展鵬) é crítico cultural e professor assistente do Departamento de Comunicação da Universidade de Macau. Originário de Macau, estudou no Canadá, Taiwan e Inglaterra. É autor das obras Encontrar Macau na Margem do Mundo, Cem Expressões do Cinema e Num Instante de Viagem.