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Matteo Ricci – Uma lança na China

July 18, 2017

Matteo Ricci – Uma lança na China

Os séculos XVI e XVII foram decisivos para o contacto entre as culturas do Ocidente e da China, graças aos esforços ousados dos missionários jesuítas, que não hesitaram em rumar directamente ao coração do poder imperial chinês: a capital Pequim. E Macau foi uma importante rampa de lançamento para essas expedições, a começar pelas de Michele Ruggieri e Matteo Ricci, sob a orientação visionária de Alessandro Valignano.
A grande aposta dos jesuítas foi a de que pouco conseguiriam, em termos dos seus objectivos em relação à China, se não dominassem a cultura e a língua desse país. De acordo com essa visão, instituíram a prática de aprender a língua chinesa de forma aprofundada e conhecer as grandes linhas do pensamento chinês, incluindo o conteúdo dos clássicos. Foi o que fizeram, por exemplo, Ruggieri e Ricci.
É nesse contexto de diálogo intercultural que surge a obra de Matteo Ricci, escrita em chinês e publicada na passagem do século XVI para o século XVII. O título é 天主實義 (Tianzhu Shiyi) e a tradução para a língua portuguesa é O Sentido (ou significado) Real de ‘Senhor do Céu’.
Além de ter tido várias reedições (o que demonstra o seu impacto no mundo intelectual chinês) Tianzhu Shiyi foi mais recentemente traduzido para línguas ocidentais, como acontece com a recente publicação pela editora francesa Les Belles Letres. O título dessa tradução para francês, dada à estampa em 2013, é Le Sens Réel de ‘Seigneur du Ciel’. Trata-se de um livro integrado na colecção “Bibliothèque Chinoise”, dirigida pelos sinólogos Anne Cheng e Mark Kalinowski. A tradução é da autoria de Thierry Meynard, S. J., que também escreve uma esclarecedora introdução à obra, resumindo os pontos essenciais do texto de Matteo Ricci. Uma vantagem significativa deste livro é que, além da tradução feita para francês, reproduz o original chinês, o que poderá ser útil para o leitor com conhecimentos de língua chinesa.
A ideia central da abordagem de Matteo Ricci é a de confrontar o pensamento tradicional chinês da época, em especial o neoconfucionismo, com a novidade do catolicismo, tentando provar duas coisas: que por um lado muitos conceitos católicos já existiam no pensamento chinês; mas que, em tudo o mais, o neoconfucionismo (bem como o budismo e o taoismo) estava errado, ao passo que o catolicismo estava certo. Para cumprir esse desiderato, Ricci recorreu aos métodos escolásticos de argumentação, baseados na discussão racional. Tenha-se em conta que Ricci não foi inovador, em termos de publicação em língua chinesa visando divulgar a fé cristã. Antes dele, o seu companheiro de projecto, Michele Ruggieri (1543-1607) já tinha escrito em chinês um livro semelhante, de título 天主實錄 (Tianzhu Shilu), Exposição sobre o Verdadeiro [sentido de] ‘Tianzhu’. Mas esta obra não teve o impacto de que gozou a de Matteo Ricci. Uma das temáticas centrais de Tianzhu Shiyi é a da confrontação entre o teísmo católico, por um lado, e a orientação profundamente panteísta – para não dizer, ateísta – do pensamento dominante chinês. Um livro que portanto vale a pena figurar nas estantes dos que se interessam pela cultura chinesa e pelo contraste cultural Oriente/Ocidente.
Neste nosso século XXI, tão politicamente correcto, impôs-se o conceito da coabitação pacífica entre culturas, o que, é verdade, traduz um saudável respeito pelo Outro. Todavia, se há respeito formal pela diferença, falta o arrojo do debate intercultural, de um verdadeiro diálogo e saudável confronto de ideias, do qual poderiam resultar benefícios mútuos, encaminhando-nos para uma tolerância mais autêntica, derivada de um conhecimento verdadeiro das razões do Outro. Com algumas notáveis excepções, a atitude instalada é a de que cada um vive na sua própria cultura sem manifestar particular interesse no conhecimento das restantes. Respeita-se mas não se conversa. Enfim, “cada um na sua”! O reino da respeitosa indiferença cultural…
É aqui que Ricci nos sugere uma lição, mostrando que não basta a relação pacífica entre culturas, devendo-se ir mais longe, num esforço proactivo de discussão com a diferença, o único caminho para uma verdadeira compreensão mútua.
Os que não se sentem confortáveis com a língua francesa poderão recorrer ao livro do Institute of Jesuit Sources, The True Meaning of the Lord of the Heaven, de 1985, traduzida por Douglas Lancashire e Peter Hu Kuo-chen e editada por Edward Malatesta.

Sobre a obra

Título

Le Sens Réel de “Seigneur du Ciel”

Autor

Matteo Ricci

Ano

2013

Edição

Les Belles Letres, Paris

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