30 anos revista MACAU: O “1,2,3” trocado por miúdos
O movimento “1,2,3” corresponde a um momento da história que “acabou por ameaçar seriamente a sobrevivência da Administração portuguesa em Macau.” Num artigo publicado em Novembro de 1996, Ricardo Pinto contava o que se tinha passado a 3 de Dezembro de 1966 e nos dias que o precederam.
É um extenso trabalho de várias páginas aquele que o jornalista Ricardo Pinto escreve para a revista MACAU. Começa pela manhã de 15 de Novembro de 1966, altura em que “um grupo de homens, quase todos muito jovens, atarefava-se a demolir uma construção devoluta”.
A PIDE — polícia secreta portuguesa —, num relatório que mais tarde elaborou sobre o incidente, viria a explicar as razões desta atitude: “Os comunistas requereram, através da Associação Comercial Chinesa, à Repartição de Obras Públicas de Macau, há cerca de 8 meses, licença para construir uma escola num terreno da ilha da Taipa, que lhes foi dado e onde ainda existe uma casa em ruínas. O Choi Ta Kei, responsável pela construção, enquanto aguardava a devida autorização, foi concentrando materiais no local acima referido, mas como com a demora verificada as chuvas iam deteriorando esses materiais, aquele construtor ordenou ao pessoal, que gratuitamente se oferecera para trabalhar na construção da escola, que fosse demolindo a casa velha.” Os responsáveis pela escola “estavam fartos de esperar por uma autorização que parecia ter ficado para sempre no fundo de uma gaveta.” Eram os primeiros meses da Revolução Cultural em que “a China parecia dominada por uma súbita onda de loucura colectiva.”
Foi dada ordem de detenção a uma delegação comunista, tornando a situação “explosiva”. A PSP veio a entrar em acção, “armada de escudos e cassetetes de borracha”. No dia seguinte, a imprensa chinesa noticiou “em grandes parangonas a carga policial da Taipa, asseverando que dela tinham resultado vinte feridos”. Em 2 de Dezembro, “a Rádio Pequim anunciou que as autoridades de Macau tinham praticado uma agressão premeditada de tipo fascista”.
Na manhã de 3 de Dezembro, surge uma delegação junto do Governador, para apresentar os seus protestos, acabando por ser expulsa. Mas a esta juntaram-se centenas de jovens no exterior do Palácio. O caos alastrou-se às ruas do território. Tentaram, inclusivamente, derrubar a estátua do navegador Jorge Álvares, irromperam pelo Leal Senado “destruindo e saqueando tudo o que iam encontrando pela frente”.
O movimento culminou com “o derrube da estátua de Vicente Nicolau Mesquita, o herói macaense do séc. XIX que os chineses consideravam um dos símbolos mais infames do colonialismo.” A estátua seria depois levada para junto das retretes públicas da Almeida Ribeiro, onde foi abandonada com o seguinte dístico em chinês: Aqui é que é o teu lugar. Os incidentes resultaram em “oito mortos, entre os manifestantes, e dezenas de feridos, entre os quais alguns portugueses”.
Desaparecida a violência das ruas de Macau, iniciaram-se as conversações. “O exército chinês tinha dez mil homens nas imediações de Macau; peças de artilharia e morteiros estavam a ser apontados ao território; ao largo, quatro fragatas navegavam na via de acesso a Hong Kong”, lia-se no artigo.
As autoridades chinesas queriam que a administração portuguesa cedesse em pontos como o castigo do coronel Mota Cerveira pela sua actuação no Leal Senado, o reconhecimento pelo Governador Lopes dos Santos das culpas da Administração e a entrega de sete guerrilheiros nacionalistas, da Formosa, que se encontravam em Macau desde 1963.
Os guerrilheiros seriam entregues em segredo às autoridades chinesas nas Portas do Cerco, sem destino conhecido. E, depois de algumas negociações com as autoridades do outro lado da fronteira, os “quatro responsáveis que os chineses queriam ver castigados foram abandonando Macau”: Vaz Antunes, Rui de Andrade, Mota Cerveira e Galvão de Figueiredo.
Posteriormente, gerou-se um impasse na discussão da minuta chinesa, com Lisboa a recusar que o orgulho de Portugal saísse ferido e a China a querer que se admitisse culpabilidade.
Mais de um mês depois, o Governo de Macau acabou por capitular às pretensões chinesas, declarando publicamente que assumia a responsabilidade pelos incidentes ocorridos em 16 de Novembro e 3 de Dezembro.
“Estado de sítio” – Revista MACAU, Série II, n.º55, Novembro 1996
[Este texto faz parte de uma série do Extramuros em que se recuperam alguns dos momentos que marcaram as três décadas da revista MACAU, uma das mais antigas publicações em língua portuguesa ainda em circulação]
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