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Crowned with the stars

May 11, 2017

Crowned with the stars

Para a maioria de nós (digo da minha geração) os assuntos dos espanhóis, ou a eles ligados, sempre nos despertaram pouca curiosidade e eu não me excluo desse alheamento.
De Espanha retenho nomes como Cervantes, Goya ou Salvador Dalí, ou o mais recente Biscainho Cazas, por exemplo, ou seja, valores universais e pouco mais.
Mas não querem saber que no mais inaudito dos cantos geográficos por onde se possa passar, no caso Sabá, na Ilha do Bornéu, na Malásia, deparei-me numas férias no escaparate de uma livraria com uma das biografias mais fascinantes que me foi dada ler nos últimos tempos por ventura em razão do inesperado da história.
A biografia tem título sugestivo “Crowned with The Stars”. O subtítulo revela o nome do biografado e o contexto da sua história: “The Life and Times of D. Carlos Quarteron, First Perfect of Borneo, 1816-1880”. Em português poderá ser qualquer coisa como: Coroado de estrelas, a vida e a época de D. Carlos Quarteron, primeiro perfeito do Bornéu. O autor é Mike Gibby.
Embora não seja escritor (trata-se de um biólogo marinho), Gibby escreve quase como Emílio Salgari escreveu as aventuras de Sandokan, precisamente nas mesmas paragens. As selvas da Malásia e do Bornéu e aventuras semelhantes. Com seitas, piratas e tudo. Um Indiana Jones antes do cinema, que também passou por Macau. Creio bem que poucos conhecerão os passos desta aventura que passou à revelia dos escritores de viagem da época.
Carlos Quarteron nasceu em Cádis no seio de boas famílias e ingressou na marinha espanhola. Inteligente, rapidamente ascendeu na hierarquia, obtendo o comando de um navio com apenas 25 anos. Passou então a fazer a carreira marítima entre Manila e Macau no Extremo Oriente onde a sua família tinha interesses comerciais.
A certa altura este aventureiro espanhol soube do naufrágio de um navio britânico nos chamados recifes de “Londres”, que ficam a meia distância entre o Bornéu e o Vietname. Recifes perigosos que no século XIX ainda se encontravam mal assinalados nas cartas de marear sendo, por isso, palco de numerosos desastres.
Intrépido e calculista, Quarteron, ao saber do tal naufrágio, provavelmente nos tugúrios de Hong Kong por onde se perdia quando escalava o Porto de Vitória, não hesitou. Abandonou a marinha espanhola, comprou um navio a que chamou “Mártires de Tonquim”, recrutou uma tripulação e alguns pescadores de pérolas conhecidos por conseguirem mergulhar sem respirar durante mais de três minutos e partiu para os perigosos recifes. Por ali esteve cerca de dois meses buscando em vão o tesouro e desafiando a paciência dos seus tripulantes que dia a dia cada vez desacreditavam mais que alguma coisa houvesse naquelas águas transparentes e coralinas. Mas a teimosia de D. Quarteron acabou por compensar os seus esforços, quando a frustração ameaçava pôr termo à empresa e, num último mergulho, foi descoberto o tesouro. Uma enorme quantidade de lingotes de prata que valiam milhões e milhões. E que julga o leitor que fez com eles?
Pois, nem mais, nem menos, do que rumar a Macau e entregar o tesouro à guarda da Santa Casa da Misericórdia, esperando que alguma seguradora saísse a terreiro para reclamar o salvado.
Entretanto a Santa Casa entregou-lhe 10 por cento do tesouro e guardou o resto, aguardando que alguém reclamasse a sua posse. Ninguém a reclamou no prazo legal e D. Quarteron acabou por ficar com toda a fortuna, ajudado pelo seu amigo José D’Almeida, um grande empresário com ligações ao comércio da borracha em Singapura que por procuração tinha ficado a tratar dos seus negócios em Macau.
Mas Quarteron era um estrénuo devoto católico, uma espécie de S. Francisco Xavier dos tempos modernos, passe o eventual exagero da comparação com o santo jesuíta. Na verdade, o seu objectivo não era ficar rico, mas sim evangelizar os indígenas do Bornéu que considerava lamentavelmente abandonados pela Igreja Católica. Era esse de facto o seu sonho mais íntimo e a razão que o tinha levado àquela busca fantástica.
Assim pegou na sua fortuna e entregou-a inteira à “Congregação para a Propagação da Fé”, ou “Propaganda Fides”, como é conhecida esta organização missionária do Vaticano, com a condição de ser inteiramente devotada ao apostolado na ilha de Bornéu.
Não vou contar as aventuras deste D. Carlos Quarteron, que frequentaria o seminário em Roma e viria a ser sagrado padre em tempo recorde pelo número três da hierarquia católica romana, assumindo os habituais votos, menos o de pobreza, excepção muito, mas mesmo muito raramente concedida fosse a quem fosse.
D. Carlos Quarteron lançou as bases da missionação no Bornéu, foi comerciante e com os navios da sua esquadra privada deu combate sem quartel aos piratas que infestavam a região. Dedicou a sua vida a libertar escravos cristãos e foi agente secreto de Espanha na luta contra os rajás da Insulíndia e também contra os ingleses.
Que vida extraordinária a deste homem que depois de mais de quarenta anos nesses mares que muitos em Macau também conhecem (é por lá que se passa férias em conta) regressou à sua Cádis natal meio arruinado. É que Garibaldi tinha unificado a Itália, o Vaticano deixou de ser um país e os seus títulos do tesouro deixaram de valer de um dia para o outro fosse o que fosse. Abandonado pelo Vaticano e malquerido pela sua Espanha que não lhe dava crédito, acabaria mal se não fossem algumas propriedades que conseguiu conservar naquela cidade espanhola.
Mike Gibby descreve esta vida extraordinária de uma forma interessante e viva.
É pena que não exista tradução deste livro para português tendo em conta que tem tanto a ver com Macau.
O livro não será fácil de adquirir, já que se trata de uma edição da diocese de Kota Kinabalu de 2005. Não sei se houve segunda edição, mas a Amazon, passe a publicidade, terá com certeza, se não houver nas livrarias mais próximas.

Sobre a obra

Título

Crowned with The Stars: The Life and Times of D. Carlos Quarteron, First Perfect of Borneo, 1816-1880.

Autor

Mike Gibby

Ano

2005

Edição

Diocese de Kota Kinabalu, Malásia

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