Rota das Letras: Yu Hua em dez palavras
Yu Hua nunca se separou da Revolução Cultural. É precisamente essa década da história contemporânea da China que continua a dar forma ao universo literário de um dos mais importantes nomes da literatura chinesa. Com Kafka aprendeu que escrever é um acto de liberdade. E admite que vai continuar a fazê-lo, mesmo com algumas das suas obras proibidas no país – é o caso de China in Ten Words, em que escolhe uma dezena de palavras para olhar a China de hoje. “Se quisermos branquear a história, ela vai voltar”, disse o escritor numa entrevista colectiva em Macau, onde está a participar no festival literário Rota das Letras. Este é Yu Hua em 10 palavras.
Catarina Domingues
Revolução
Quando terminou a Revolução Cultural, eu tinha 17 anos. Ao escrever, regresso continuamente a esse período, é natural, espontâneo, inevitável, é algo a que não podes escapar. O problema de hoje é que os mais jovens não sabem o que foi a Revolução Cultural, parece que foi apagada da história. O Governo chinês proíbe a discussão, não quer que fales disso nem nada que esteja relacionado com o evento. O ano passado marcou os 50 anos da Revolução Cultural. Inicialmente pensei que seria feita alguma cobertura ao evento, mas não, nada. Na internet, a informação foi inteiramente bloqueada. Após 50 anos, o comportamento do Governo continua a funcionar e os mais jovens não sabem de nada, não estão interessados. Não me parece que seja positivo para o futuro da China. Se quisermos branquear a história, ela vai voltar. Se não tentares encobrir, talvez não volte, porque aí todos conhecem o perigo do que pode acontecer. A Revolução Cultural é como a dinastia Qing, está já muito distante. (…) O impacto é eterno, nunca se vai apagar, tem ainda uma cor muito forte.
Autores
O escritor que mais me influenciou foi [Yasunari] Kawabata, muito famoso no Japão e prémio Nobel. Foi a minha primeira referência literária, tinha uma narrativa detalhada, uma subtileza e um estilo que me atraíram. Mas mais tarde senti que me limitava, porque estava a imitá-lo. Por volta de 1996 tornou-se numa armadilha, estava a encurralar-me. Foi Kafka que me salvou. Não foi com ele que aprendi a escrever, mas foi ele que me ensinou que a escrita é um acto de liberdade e que podes escrever o que queres.
Erros
Nos anos 50, na era de Mao Zedong, ter muitos filhos era algo que te devia orgulhar. Depois a população cresceu e aí passámos a um outro extremo. Com a política do filho único, tornámo-nos numa sociedade envelhecida. Penso que este erro é irrevogável, não pode ser alterado.
Censura
Na ficção podes usar várias estratégias para encobrir e expressar algo que queres dizer de forma pouco explícita. Quando não é ficção é muito difícil, tens de ser mais directo. Quando eu estava a escrever China in Ten Words, depois de terminar o primeiro capítulo, que aborda o 4 de Junho na China [incidente de Tiananmen], que é um tema proibido no país, pensei: Este trabalho nunca vai ser publicado na China. Ainda assim, escrevi o livro, porque podia ser publicado em Taiwan, em Hong Kong.
Independência
Para medir o nível de um escritor existem dois critérios. Primeiro, a independência e depois a capacidade crítica. À medida que o tempo passa, o governo vai-se tornando mais tolerante, seja porque se sinta forçado a isso ou não, e vão-se ouvindo mais vozes críticas. Podes fazer com que a tua voz seja ouvida, podes publicar o teu trabalho, o problema agora é o seguinte: enquanto escritor tens de ser independente. A independência deve sobrepor-se à capacidade crítica.
Violência
Nos anos 80, a minha literatura era definida como vanguardista, nos meus trabalhos imperava a violência, o sangue. A razão por que isso acontece tem a ver com o ambiente onde cresci. No plano mais pessoal: os meus pais eram médicos e trabalhavam num hospital. Eu vivia no hospital e na minha infância ia ver as cirurgias do meu pai. Costumava ver morgues, cadáveres. Num plano mais geral: a Revolução Cultural. As ruas estavam cheias de violência e, em criança, assisti a um episódio em que uma pessoa foi espancada até à morte. Quando escrevo não consigo escapar à violência, continua a assombrar-me.
Bíblia
Sou ateu. Para alguém que foi educado num contexto como o meu é impossível ter convicções religiosas. Mas li duas vezes a Bíblia, do princípio ao fim. Ainda costumo ler frequentemente algumas passagens. Penso que a Bíblia é o grande livro, porque abarca economia, literatura, política, filosofia, matemática, geografia, tudo, é caleidoscópica, é uma enciclopédia.
Política
Tenho 57 anos e nunca vi um boletim de voto.
Lu Xun
Ele estudou medicina, eu fui dentista. Lu Xun estudou no Japão e eu na China. Não há comparação entre os dois, porque ele é uma grande figura, no que diz respeito à espiritualidade. Seria impossível ofuscá-lo. Não nos podem pôr na mesma categoria, embora exista um ponto em comum: Lu Xun era odiado por muitos escritores da sua geração. Nesta geração também não sou muito popular. Temos má reputação.
Durante a Revolução Cultural li Lu Xun e odiava-o, odiava o trabalho dele. Na minha infância, ele era o pior dos escritores, tínhamos de o recitar [na escola] e para mim era muito difícil entender o seu trabalho. Ele não escreve de forma explícita, mas abstracta, o que não era apropriado para uma criança. Quando regressei ao trabalho dele, aproximámo-nos. Se tivéssemos vivido na mesma época, se estivéssemos debaixo do mesmo tecto, a fumar, a beber, e pudéssemos criticar um bando estúpido de escritores chineses, seria um prazer.
Escrever
Na China contemporânea podes escrever sobre muitas coisas, mas com essa diversidade de assuntos, tens de fazer uma escolha. Isso torna necessário abandonar temas, porque não podes falar de tudo. Nesse processo de abandono, tens de considerar se o que deixas de lado é importante. Fico com dor de cabeça ao pensar no que devo reter ou descartar. Muitos escritores vivem esse dilema. Um grande romance só soluciona um problema.
Yu Hua nasceu em 1960 em Hangzhou, província de Zhejiang. Trabalhou como dentista ao longo de cinco anos, dedicando-se à escrita a tempo inteiro desde 1983. Publicou cinco romances, seis colecções de contos e cinco de ensaios. Entre as obras do autor destacam-se Brothers (Irmãos), To Live (Viver), Chronicle of a Blood Merchant (Crónicas de um Vendedor de Sangue) e China in Ten Words (China em Dez Palavras). Yu Hua recebeu vários prémios internacionais, incluindo o Grinzane Cavour (1998) e o Prix Courrier International (2008). To Live deu origem ao filme com o mesmo nome, realizado por Zhang Yimou e vencedor do Grande Prémio do Júri em Cannes. Yu Hua tem vários livros traduzidos em mais de 30 línguas. Em português estão disponíveis Crónicas de Um Vendedor de Sangue, Viver e Irmãos.
Foto de destaque: Eduardo Martins/Festival Literário de Macau